Thais Weiller http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br Thais Weiller é mestre pela ECA-USP pesquisando game design, com uma dissertação que virou um livro e um blog. Tue, 04 Aug 2020 18:30:41 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Começando o jogo: Faculdades são necessárias para fazer games? http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/08/04/comecando-o-jogo-faculdades-sao-necessarias-para-fazer-games/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/08/04/comecando-o-jogo-faculdades-sao-necessarias-para-fazer-games/#respond Tue, 04 Aug 2020 18:30:41 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=332 Todos nós aqui obviamente jogamos e consideramos jogos uma importante parte da nossa vida. A cada ano que passa, mais pessoas concordam com isso e conforme o número de jogadores aumenta, jogos ganham um lugar cada vez mais privilegiado na nossa cultura. Cada vez mais, jogos são vistos como algo incrível e quem é sortudo o suficiente para trabalhar com isso como um vencedor. 

Sabemos, entretanto, que trabalhar com jogos não é só alegrias e sucesso, e que jogos não são um trabalho individual de uma mente brilhante, mas sim o trabalho compartilhado de várias, várias pessoas. Mesmo não sendo a carreira de anjos e deuses – com dinheiro e reconhecimento grátis – que muita gente ainda acha, trabalhar com games não precisa ser um sonho distante: é uma opção viável para a maioria das pessoas, desde que elas saibam bem o que esperar da área.

Com frequência, recebo emails, twits e mensagens de pessoas perguntando como elas podem participar da criação de games. Como detentora de uma trajetória não muito ortodoxa dentro da indústria de jogos, eu não posso recomendar o meu caminho em particular, mas também aconselho nenhum caminho único para todo mundo. Não é um mapa do tesouro ou um plano de carreira claro que qualquer pessoa que almeje trabalhar em qualquer área envolvendo jogos podem seguir. Cada indivíduo, dependendo de suas habilidades, seus desejos e em especial em qual momento que está de sua vida, pode fazer coisas mais ou menos importantes para seu crescimento pessoal e na área. E, aliás, nenhuma dessas ações ou conjunto delas é uma garantia de sucesso, independentemente do que cada um define como sucesso. 

Existem vários primeiros passos possíveis considerando as particularidades da sua vida, de cursos de extensão a graduação e jams. Hoje vamos falar qual a relação de faculdades, em especial cursos específicos de jogos digitais, e fazer games. Antes de continuarmos, preciso dizer que sou professora do curso de Tecnólogo em Jogos Digitais da PUCPR o que com certeza informa minha opinião sobre o assunto, mas talvez não da forma que você espera.

Primeiro de tudo vamos conversar sobre o que esperar do curso de jogos digitais. Tendo em vista que todo primeiro semestre alguns alunos desistem do curso por conta disso vou dizer já no começo: a faculdade de jogos digitais não é uma faculdade que você vai só pra jogar jogos. Você até joga jogos, mas o foco mesmo é fazer jogos. Se você quer apenas jogar, não entre na faculdade e não gaste o dinheiro dos seus pais ou seu e o seu precioso tempo. Agora voltando as informações realmente relevantes, ao meu ver, é um curso de introdução sobre o que é um jogo, como fazê-lo, as áreas e passos do processo, como funciona a indústria de jogos, e em especial um espaço seguro para conhecer outras pessoas que também querem fazer jogos. Nunca subestime a importância de conhecer e poder trabalhar junto em um ambiente cuja sua maior preocupação é o lanche da cantina e a nota do trabalho e não se você vai ter ou não salário no fim do mês. Por isso também, a faculdade é um ótimo espaço para testar e treinar sua capacidade de trabalhar com outras pessoas, entender que idéias não são boas ou ruins mas sim bem ou mal empregadas a serviço do jogo e a lidar com expectativas.

Isso pode soar como algo do jardim de infância, né, aprender em trabalhar em grupo, mas não é. É uma habilidade essencial para qualquer desenvolvedor de jogos, e uma habilidade que ainda sim falta a muito deles. Seu jogo só vai ser tão bom quanto a equipe que o fez, e a equipe só é capaz de fazer seu melhor quando todos os membros sentem que podem confiar uns nos outros e que seu trabalho está sendo valorizado e bem utilizados pelos demais. Se você acha que nunca trabalhou em um grupo em que você se sentiu assim, talvez a faculdade de jogos seja para você.

Quanto ao conteúdo, às matérias que você vai encontrar, é verdade que a maioria você pode sim encontrar em outros lugares. Game design, arte, programação, todos esses pontos podem ser aprendidos até com mais profundidade do que em sala de aula até no youtube. Isso não é uma falha da faculdade de jogos, mesmo por que isso é verdade para todas os cursos de faculdades do mundo, a diferença é que a faculdade oferece uma pessoa treinada, o professor, que vai te oferecer uma versão curada desse conteúdo na ordem em que considera mais propícia para seu aprendizado. O professor, aliás, é uma pessoa com quem você pode tirar dúvidas e pode te sugerir caminhos diferentes de aprendizado, inclusive para conteúdos mais avançados do que ele apresenta em sala de aula caso esse seja seu interesse. O professor é o moderador do seu conhecimento, então, sempre que possível, tente conhecer seus futuros professores antes de decidir se vai cursar ou não a faculdade de jogos. Conversar com eles e entender como eles vêem suas matérias vai te ajudar muito a entender se esse curso é para você, e eu te garanto que professores adoram essa preocupação vinda de alunos e possíveis alunos; mostra que você se importa tanto com a sua educação quanto eles.

Mas antes de mandar emails para todo corpo discente da faculdade de sua cidade e se matricular, você precisa também considerar onde você está na sua vida. Você já é formado em uma faculdade ou está quase graduando e conhece um grupo de pessoas que trabalham com jogos ou que estariam dispostos a fazer um com você nas horas vagas? Se a resposta é sim para ambas, o curso de jogos digitais não é, ao meu ver, a escolha mais direta para você. Talvez uma especialização, um estágio, cursos online e jams sejam uma escolha mais econômica (em relação tanto a tempo quanto dinheiro) de você conseguir o conhecimento que precisa e conhecer as pessoas que podem te ajudar a chegar lá. Vou falar mais sobre o que fazer caso você respondeu sim para ambas ou uma dessas perguntas no futuro para não fugir do tema de faculdades de jogos.

Outro ponto a se considerar é se você já sabe o que quer fazer em jogos ou não. Se você já sabe com toda certeza que quer ser programador, talvez seja mais interessante procurar uma graduação na área de programação em uma faculdade que também tem o curso de jogos, de forma que você pode fazer algumas matérias no curso de jogos. Da mesma forma, se você sabe que quer trabalhar com arte ou música ou áudio, talvez faculdades nessas áreas sejam mais interessantes. A única exceção é se você quer trabalhar com game design, pois nesse caso o curso de jogos é o mais próximo da sua especialização buscada. Neste caso, a parte de falar com os professores é especialmente importante para você ter uma idéia o quão aprofundado é o ensino de game design no curso que você está se inscrevendo.

Agora que você tem uma boa idéia sobre se você deve ou não entrar em uma faculdade de jogos digitais, vamos falar o que você não pode esperar dela e para mim a principal coisa é: você não deve esperar que vai sair dela sendo um especialista qualquer coisa. Como eu disse no começo do texto, a faculdade é uma excelente introdução à todas as áreas do desenvolvimento e mesmo faculdades que oferecem uma escolha em foco dentro do curso (na PUCPR, por exemplo, temos o foco em programação e outro em artes), você não vai sair dela sabendo tudo que precisa saber para trabalhar na área. Você ainda vai ter que aprender muito, teoricamente e na prática. Isso, mais uma vez, não é uma falha da faculdade de jogos digitais em si mas uma falha de faculdades em geral. O tempo é muito curto, a academia é muito restritiva, certos conhecimentos só vem com o tempo. O sucesso aqui é que você saia da faculdade entendendo melhor a área e sabendo qual parte dela você quer trabalhar com e aprender mais sobre.

A graduação em jogos digitais é uma forma concisa e condensada de entender a indústria, conhecer pessoas que fazem parte dela ou que querem entrar junto com você, e que pode ser exatamente o que você precisa ou não dependendo do momento da sua vida. Ela não é um ticket garantido para a indústria ou para os milhões de dólares em jogos e, em especial, não é o fim da sua jornada de aprendizado mas sim o começo de uma longa, longa jornada. 

Semana que vem vamos falar de outras formas de entrar na área de games, fiquem ligadinhos.

]]>
0
Achou que tinha entendido? “Achou errado, otário!” http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/06/02/achou-que-tinha-entendido-achou-errado-otario/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/06/02/achou-que-tinha-entendido-achou-errado-otario/#respond Tue, 02 Jun 2020 13:30:47 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=315

A série Metal Gear trata de temas como a luta contra governos autoritários; ainda assim, há quem se diga fã de Snake mas que ao mesmo tempo apoie governantes truculentos e fascistas

Quase dois anos atrás, quando estávamos em época de eleições, nós da JoyMasher decidimos que não podíamos mais assistir em silêncio ao espetáculo mórbido que se desenrolava à nossa frente. A construção dessa frase está um pouco exagerada — na verdade, eu e o Danilo éramos bem vocais sobre nossas posições pessoais, mas nunca havíamos utilizado o selo do nosso estúdio para um posicionamento destes.

Por um lado, pensávamos que era óbvio: o estúdio é composto por dois indivíduos, os dois veementemente contrários ao candidato misógino que faz apologia à ditadura e ao autoritarismo, portanto, as pessoas deveriam conseguir fazer as contas. Por outro, o estúdio é o criador dos jogos, as pessoas gostam dos jogos e por consequência do estúdio, não precisam conhecer as pessoas por trás deles. Você gosta do cachorro quente do carrinho que fica na Av. Getúlio Vargas, não necessariamente sabe o nome e a escala de cada um dos chapeiros e o posicionamento deles sobre genocídio e segregação racial (embora eu espere, de todo coração, que sejam contrários). 

Achávamos que, mesmo pelo segundo cenário, os jogadores seriam capazes de perceber os temas e mensagens por trás de nossos jogos. Oniken fala sobre um pequeno grupo de humanos que lutam contra a máquina e máquinas fascistas. São revolucionários estranhos e diferentes entre si que se unem para sabotar e talvez até destruir um regime violento e autoritário que busca homogênificar a terra, destruindo a vida orgânica dela. Claro, tendo em vista o feel over-the-top e macarronico que queríamos com esse jogo, você luta contra a violência com mais violência, mas vocês entendem o ponto: lutem contra o poder. 

Achávamos que os jogadores seriam capazes de perceber os temas e mensagens por trás de nossos jogos

Odallus, por outro lado, era um questionamento sobre esse poder. Temos o protagonista Haggis, um grande guerreiro, que no começo do jogo acreditamos  ser a vítima de uma grande injustiça, o sequestro de seu filho. No decorrer do jogo, no entanto, descobrimos que Haggis é a personificação pela busca desenfreada pelo poder na qual nenhum sacrifício é grande demais desde que o coloque mais próximo de seus objetivos. Em algum momento no passado, Haggis tentou desistir desta vida e levar uma existência mais sossegada com seu filho, mas alguém assim não pode fugir de seus crimes para sempre. Ou seja, o poder corrompe, e mesmo que você tente fugir de suas ações, as consequências ainda vão atrás de você.

Blazing Chrome ainda não havia saído em 2o18, embora era o jogo do qual mais falávamos no período, mas ele é tematicamente muito parecido com o Oniken — então acho que não precisamos discuti-lo em profundidade. Só gostaria de citar que em Blazing temos um protagonista que fazia parte do regime (Doyle, o robô). Ao encontrar sua individualidade, ele foi capaz de escapar da influência fascista, o que para mim simboliza o poder em reconhecer seu próprio erro e mudar suas atitudes.

O robô Doyle é um dos personagens de Blazing Chrome, lançado em 2019

Depois de ponderados todos esses pontos, acreditamos que nos posicionar publicamente e inequivocamente ainda era nosso dever, mas que não deveria provocar grande surpresa considerando todas as outras áreas e contextos que havíamos nos posicionado.

Achamos errado, otários que somos.

No Twitter e Facebook, onde nosso posicionamento atingiu mais pessoas, houve, sim, comentários de apoio ou de entendimento de algumas pessoas que discordavam da nossa visão mas entendiam a posição. Também houve comentários de surpresa e indignação, e até alguns com ameaças. A recepção, embora tenha nos surpreendido no resultado, provou o quanto se fazia necessário sermos claros sobre como vemos a situação.

A recepção, embora tenha nos surpreendido no resultado, provou o quanto se fazia necessário sermos claros sobre como vemos a situação

Depois desse momento (infelizmente), nunca mais me surpreendi quando autoproclamados amantes de determinados jogos defendem e demonstram ações tão absolutamente diferentes das que tais jogos demonstram.

A série Metal Gear trata de temas como governos autoritários e a luta contra eles, a importância de questionar o poder, em especial quando este se corrompe e coloca vidas em segundo plano. Não é uma das minhas séries favoritas, já que trata esses temas, a meu ver, de forma superficial e infantilizada. Mas é necessário reconhecer os méritos quando eles são devidos: Metal Gear fala sobre, essencialmente, as consequências da busca desenfreada pelo poder (em especial, bélico e militar) e da luta contra esse poder. Ainda assim, não tenho fios de cabelo o suficiente para contar todos os que se dizem fãs de Snake ou de Big Boss mas que apoiam ações, governantes e governos autoritários, truculentos e fascistas. 

Não tenho fios de cabelo o suficiente para contar todos os que se dizem fãs de Snake ou de Big Boss mas que apoiam ações, governantes e governos autoritários, truculentos e fascistas

A série Metroid foi uma das primeiras a ter uma protagonista mulher

Já não tão popular graças a uma série de péssimos reboots, a série Metroid foi uma das primeiras a ter uma protagonista mulher. E não só isso: uma mulher que não correspondia aos padrões de gênero prevalentes na época. Samus era uma mulher que explorava, lutava e atirava sem titubear , sem usar saia ou laços e sem a necessidade de ser sexy (ao menos, antes do fim do jogo). A redução da popularidade diminuiu o número de pessoas que podemos chamar de fãs da série, mas ainda assim muitos deles são os mesmos que estão reclamando de como o politicamente correto está destruindo o direito a peitões em jogos de luta.

Uma triste história sobre como grandes corporações destroem vidas e planetas em busca de lucro e poder, Final Fantasy 7 tem fãs que defendem a unhas e dentes a atual megacorporação que detém os direitos do título e lança produtos e reboots incessantemente. Uma gentil experiência sobre empatia, aceitar diferenças e abraçar o que nos torna únicos, Undertale foi justificativa para cyberbullying por parte de alguns de seus fãs. 

Undertale: “o RPG em que você não precisa destruir ninguém”

Por último, e de longe o tópico mais desanimador de todos, vamos falar dos autoproclamados gamers e nerds, que foram marginalizados e brutalizados quando eram mais novos, seja por seus gostos diferentes ou por características físicas ou por qualquer outro motivo.

A busca dessa identidade agora na vida adulta é importante e catártica para eles. Sentem-se orgulhosos de persistir a gostar do que antes foram perseguidos e ridicularizados por amar. Essa simpatia e compaixão por outros nerds, entretanto, evapora quando muitos desses outrora excluídos percebem grupos que, na opinião deles, não têm o direito de gostar das mesmas coisas. O motivo de não ter tal direito, você se pergunta? Varia bastante de individuo para indivíduo, mas vai desde falácias lógicas como “eu nunca conheci ninguém desse grupo que gostava disso quando eu era mais jovem, LOGO, ninguém desse grupo nunca gostou disso, LOGO, se você é desse grupo e diz que gosta disso você só está fingindo” ao velho e enraizado preconceito “esse grupo não joga bem”. Desta forma, o grupo de pessoas que se unia pelo trauma passado por ser excluído acaba excluindo novos grupos, fortalecendo estigmas tóxicos e aumentando abismos. 

A vítima de bullying se torna o bully, ou como diria Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

Claro, esse processo não se dá apenas no universo gamer, oxalá no universo geek. Quantos entusiastas de segunda guerra mundial preferiam não ver os claros sinais da história se repetindo em 2016 e 2018, quantas pessoas que choraram em Avatar ou assistiam os Animais do Bosque dos Vinténs quando crianças apoiam a derrubada da floresta amazônica e a sucateação das instituições que deviam protegê-la, quantos Trekkers são itolerantes com quem é diferente…

Eu poderia continuar esta lista por dias e não acabaria os exemplos de pessoas que simplesmente não entederam a lição que as obras de ficção tentam passar ou as consequências irreversíveis de ações históricas. Mas não importa quantos exemplos eu dê, eu não consigo entender exatamente por que isso acontece. É falta de compreensão do original ou uma capacidade de abstração e recorte do que não lhe convém? É o viés de confirmação pintando qualquer coisa apenas com as cores das crenças individuais ou é o egoísmo de se benficiar da própria narrativa?

Independentemente do motivo, essas pessoas ainda existem e se recusam a admitir suas próprias hipocrisias. Se contestadas a respeito de seu problema lógico, respondem de forma evasiva ou atacando como defesa. Quando pessoas morrem dentro de casa ou protestando contra o uso excessivo de violência, a culpa nunca é da pessoa exercendo a violência excessiva e do sistema que a colocou lá, a culpa é da roupa, é da hora, é do lugar, é do tempo, é do PT.

Não sou vidente mas já sei as reações a este texto. Alguns vão entender e concordar. Outros vão entender também, mas vão discordar. Outros vão continuar não entendendo, vão negar que as mensagens desses jogos sejam essas, afirmar que jogos não têm nada a ver com política, que se posicionar quanto a isso é uma perda de tempo ou dinheiro ou dos dois, que eu vou devia mudar pra Cuba, ser fuzilada e falir (não sei se nesta exata ordem).

Se você está nesta última categoria e chegou até aqui, meu muitíssimo obrigado e o convite para, em vez xingar muito nos comentários, refletir em que momento da sua vida você começou a ignorar informações que não te agradam. É algo pequeno, mas que ainda vai te ajudar muito na sua vida a partir deste momento, meu anjo.

Só mais uma tela de loading em The Outer Worlds

]]>
0
Fazendo jogos enquanto o mundo pega fogo http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/05/26/fazendo-jogos-enquanto-o-mundo-pega-fogo/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/05/26/fazendo-jogos-enquanto-o-mundo-pega-fogo/#respond Tue, 26 May 2020 17:00:22 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=305

(Crédito: Peacefoo/iStock)

Semana passada falei de como jogos podem nos ajudar a passar por momentos difíceis, como esta quarentena. Hoje, quero falar sobre como esses tempos difíceis tratam quem faz jogos.

De minha parte, pouco mudou. A JoyMasher somos o Danilo e eu e nós já trabalhávamos do escritório que fica em nosso lar. Trabalhamos com nossos parceiros (Iuri Nery para o Blazing Chrome e o André Yin para o Moonrider) de forma remota desde sempre, mesmo com André que mora na mesma cidade que nós. Os impactos e efeitos da quarentena nos afetam de todos os lados mas não na rotina do trabalho, que permanece praticamente igual.

A realidade de muitos desenvolvedores independentes é muito próxima da nossa. A maioria de nós trabalha de casa ou de um escritório com poucas pessoas, a maioria de nós usa a internet para a maioria das coisas, em especial comunicação. A maioria dos nossos jogos está disponível majoritariamente por lojas virtuais, em distribuição digital, recebendo pouquíssimo impacto nas vendas. Para nós, o maior problema vem de todo o resto que não seja o trabalho; no trabalho há até o conforto de algo que não mudou muito em um mundo completamente diferente.

Esta não é a realidade de desenvolvedores que trabalham para estúdios maiores, em especial em outros países. Como no Brasil estamos de quarentena, mesmo que a trancos e barrancos, há alguma pressão social para se trabalhar de casa. Somado a isso está como a maioria dos devs tem intimidade em usar ferramentas para comunicação digital e a facilidade de se trabalhar colaborativamente online com o tipo de coisas que fazemos, resultado em uma grande parte dos estúdios permitindo que o pessoal trabalhe de casa. Há exceções, sempre existem os chefes néscios, mas praticamente todos com quem falei aqui no Brasil estão trabalhando de casa.

Isso complica muito em países que não estão tomando medidas de contenção ou em que fake news encontram solo fértil e onde as relações trabalhistas são menos estruturadas, como por exemplo os Estados Unidos. Lá, em que praticamente todos os estúdios possuem dois tipos distintos de contrato de trabalho sendo eles empregados (semelhantes a um empregado com carteira assinada aqui) e contractors (semelhante aos informais ou PJ aqui), o tratamento destas duas castas é completamente diferentes. Enquanto muitos estúdios se gabam de ter permitido home office para seus funcionários o que eles deixem de comentar é que este benefícios comumente é oferecido apenas para os empregados e não para os contractors, que chegam a ser mais da metade de um estúdio por custam menos e terem menos direitos. Mês passado, a Naughty Dog entrou em uma enrascada quando foi vazado que o departamento de QA, todo ele composto de contractors, foi obrigado a trabalhar e fazer hora extra no escritório enquanto o vírus se espalhava por Los Angeles e seus salários eram congelados. 

A Naughty Dog, desenvolvedora de The Last of Us II, foi acusada de mau gerenciamento de funcionários

Se está difícil para nós, que podemos trabalhar da segurança da nossa casa, imagine para esses contractors arriscando diariamente suas vidas por que empresários não queriam atrasar o lançamento do próximo The Last of Us Part II. Felizmente, com o vazamento dessa informação houve uma reação bem negativa entre o público e a Sony, dona da Naughty Dog, preferiu parar de colocar a vida de seus trabalhadores em risco a má publicidade que resultaria de continuar com essa estratégia e atrasou o lançamento do jogo. Infelizmente, muitos trabalhadores que trabalham em jogos menos conhecidos ou cujos problemas são melhores escondidos por seus contratantes não têm a mesma sorte. Inclusive aqui no Brasil, onde a maioria dos devs trabalha em títulos que a maioria dos gamers prefere ignorar ou fingir ignorar.

O caso de The Last of Us mostra o quanto vocês, jogadores, têm poder sobre a vida e bem estar das pessoas que fazem os jogos que tanto amamos. Lembre-se disso quando quiser reclamar de algum jogo, pergunte-se se sua crítica está de fato ajudando o jogo a ser melhor a ajudando a vida das pessoas que o fazem. Quando essa ameaça viral estiver sobre controle e estivermos no novo normal, não se esqueça do poder que você tem sobre as pessoas que fazem os jogos que você joga.

]]>
0
Jogando enquanto o mundo pega fogo http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/05/13/jogando-enquanto-o-mundo-pega-fogo/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/05/13/jogando-enquanto-o-mundo-pega-fogo/#respond Wed, 13 May 2020 17:30:22 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=292

Tempos difíceis esses pelos quais passamos, presos em nossos lares observando atônitos o mundo lá fora, como peixes em um aquário. Não devemos sair (podemos, mas não deveríamos), e acabamos nos resignando a ficar em casa mesmo. Vemos o tempo passar lentamente lá fora enquanto assistimos aqui dentro, sem ação.

Jogos são sobre ação e sobre permitir que o jogador sinta-se no controle de sua trajetória. A sensação que vem desta capacidade de a) escolher entre opções e b) pôr em prática esta escolha em sua própria vida é chamada na sociologia e no estudo de jogos de agência. Como game designers, nosso papel é permitir o tipo certo de agência para o jogador dentro do jogo para que ele sinta como nós queremos que ele se sinta, de oprimido a poderoso. 

Como game designers, nosso papel é permitir o tipo certo de agência para o jogador dentro do jogo para que ele sinta como nós queremos que ele se sinta, de oprimido a poderoso. 

Em tempos de pandemia, nós nos encontramos sem agência para chamar de nossa, e essa perda de poder nos causa angústia. Com frequência, tentamos tapar essa angústia com ações que nos fazem nos sentirmos confortáveis, o que é chamado de mecanismo de enfrentamento. Estamos aprendendo muitas palavras complicadas hoje mas o mecanismo de enfrentamento é um nome longo para algo com o qual já estamos bem familiarizados: assistir TV bem mais do que devíamos, comendo mais doces do que o recomendado, jogando jogos de forma excessiva e até vícios químicos, como forma de não pensar ou não encarar os outros problemas que nos cercam. 

Em tempos como estes em que nossa única opção é esperar, jogos tornam-se uma atraente compensação para nossa falta de agência no mundo real. No mundo digital ainda temos todo o poder conforme definido pelos desenvolvedores, ainda podemos decorar nossa ilha, atirar nos vilões, salvar o povoado. A agência virtual se torna especialmente viciante ainda mais quando combinada ao potencial social que muitos jogos permitem. Não podemos mais ir às aulas e ver nossos colegas ou ir no bar e rever amigos, mas ainda visitar suas vilas em Animal Crossing ou construir nossas vilas juntos em Minecraft.

Em épocas anteriores, eu sugeriria sempre estar alerta aos seus mecanismos de enfrentamento e enfrentá-los de frente. Hoje, eu defendo que escolhamos os mecanismos que são menos prejudiciais à nossa saúde e tragam o máximos de bem estar possível

Psicólogos recomendam prestar atenção nesses mecanismos, já que eles indicam a tentativa de fuga de um problema ou ameaça, tentar reconhecer a causa desta resposta e agir a eliminando. No nosso caso, entretanto, a causa está clara a todos, a resposta à ameaça também. Temos que ficar em casa, saindo o mínimo possível, enquanto o mundo sobrevive à uma crise sem precedentes. Para trabalhadores não essenciais não há ação possível, apenas paciência enquanto observamos os obrigados a agir de dentro do nosso aquário, isolados. 

Em épocas anteriores, eu sugeriria sempre estar alerta aos seus mecanismos de enfrentamento e enfrentá-los de frente. Hoje, eu defendo que escolhamos os mecanismos que são menos prejudiciais à nossa saúde e tragam o máximos de bem estar possível. Joguemos o quanto quisermos para sobrevivermos até o momento em que poderemos novamente enfrentar de frente nossos medos e problemas.

]]>
0
Por Trás do Jogo: O Tal do Lead Game Designer http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/04/14/por-tras-do-jogo-o-tal-do-lead-game-designer/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/04/14/por-tras-do-jogo-o-tal-do-lead-game-designer/#respond Tue, 14 Apr 2020 17:30:02 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=278 Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. O Ygor Speranza vai falar hoje sobre o trabalho de um lead game designer. O Ygor é formado em matemática aplicada pela UFRJ e tem um mestrado em Computação Gráfica. Ele trabalha com desenvolvimento de software há 10 anos e com desenvolvimento e design de games há 5 anos. Atualmente é Lead Game Designer da Hoplon, responsável pelo Heavy Metal Machines.

Crédito: istock

É tudo bem estranho. Bem estranho. Lá fora, uma pandemia de efeitos apocalípticos faz aquilo que eu tenho para dizer parecer superficial. Não tão importante assim. Eu entendo. Não esquenta. Este texto ainda vai estar aqui (ou em algum outro lugar, eu tenho certeza) quando tudo isso acabar. E isso vai acabar. Agora: se, por outro lado, você está fazendo a sua parte, quarentenado, e sempre quis saber como é ser um Lead Game Designer, aproveite a clausura e continue aqui comigo.

Escrevi este texto com as mãos devidamente lavadas.

Mas quem sou eu? A probabilidade maior é que você não faça a menor ideia. Sendo assim: eu sou o Ygor. Sou carioca. Acredite se quiser, sou formado em Matemática Aplicada. Meus primeiros trabalhos foram como programador, fora ainda da área de jogos, empregado em uns três setores completamente nada a ver com games. Tendo amado e me interessado por jogos desde criança, não consegui ficar muito tempo longe. Comecei com uma vaga de programador em um estúdio carioca, a Nano Studio. Depois, me juntei a empresa de um amigo de Nano, a Midipixel, formando assim um time indie de duas pessoas, time esse que me deu meu primeiro jogo lançado, o Warlock’s Tower. O Warlock’s me deu muitas alegrias: com ele ganhamos prêmios do SBGames (“Melhor Game Design” e “Melhor Jogo Em Desenvolvimento” em 2015); participamos de diversos eventos, fazendo muitos e muitos amigos; aprendemos para caralho; e publicamos em diversas plataformas (PC, Mac, Android, iOS, PS4, PSVita, Xbox e Switch!), isso sem contar a integração com o Twitch. Tudo deu bastante trabalho, e eu ainda teria feito muitas coisas diferentes se voltasse no tempo. Mas nada vai tirar o puta orgulho que eu tenho desse joguinho monocromático, que eu não consigo desinstalar do meu celular mesmo quando não tenho mais espaço para outras coisas.

(Werther, na esquerda, e eu. 100% da Midipixel cabendo num sofá.)

Alguns meses depois do lançamento do jogo, em 2017, desejoso de uma mudança de ares, participei de um processo seletivo da Tapps Games e fui chamado para ser um dos Lead Game Designers de lá. O salário fixo me permitiria desbloquear algumas partes ainda “travadas” na minha vida pessoal. Eu aceitei, devolvendo a Midipixel às mãos de seu fundador, e fui para São Paulo, onde a Tapps fica. Toda a experiência foi bastante louca, com a quantidade enorme de experiências novas que essa mudança exigiu. A Tapps até hoje continua sendo o maior estúdio de jogos de que eu fiz parte, numericamente falando: pouco tempo depois que eu entrei, ela ultrapassou a marca dos 150 funcionários. Fiquei lá do meio de 2017 até o final de 2018, quando recebi uma proposta da Hoplon. Vim para cá para Florianópolis no início de 2019, e é aqui que estou agora.

(Quer dizer: não “agora”. Agora eu estou em casa. Você também deveria estar!)

Aqui, na Hoplon, minha função, assim como era na Tapps, é a de Lead Game Designer. E o que faz um Lead Game Designer?

Antes da gente continuar, contudo, vou fazer uma outra pergunta: o que faz um Game Designer?

Essa é uma boa pergunta. Pense no Game Designer como o “projetista” do jogo. É ele que normalmente produz as definições de como tudo deve funcionar, de forma geral. Se existe uma documentação de como as coisas devem ser feitas pelos criadores de um jogo, ele costuma ser o primeiro a escrevê-la, e muitas vezes é o único. Ele é quem costuma fazer os mapas e plantas dos jogos que você joga. Assim como, em muitos estúdios, é ele quem desenha os layouts das telas (onde vão os botões, onde vão os textos, etc). Se um jogo precisa de certas quantidades numéricas exatas para funcionar (número de dinheiro dado por cada monstro, o poder de ataque de cada arma, esse tipo de coisa), provavelmente foi um Game Designer que se estressou por dias, em certos casos semanas, até achar o valor final (não necessariamente tendo ficado satisfeito com ele).

Como esse trabalho todo é distribuído ou acumulado em pessoas dentro de um estúdio costuma depender de seu tamanho: estúdios grandes podem especializar seus Game Designers, em subdivisões como Level Designers, Game Play Designers, UI Designers, System Designers, Content Designers, e por aí vai. E o contrário também é verdade: em estúdios pequenos, é muito comum que esse trabalho seja distribuído entre todos os integrantes da equipe. Na Midipixel, por exemplo, que era só eu e Werther, eu fui o designer principal das mecânicas e monstros, enquanto o Werther projetou as telas. Com relação ao Level Design, nossa divisão ficou perto de meio a meio.)

Tom Hanks como inventor de brinquedos no Filme “Quero Ser Grande”. Será que foi por causa desse filme que eu virei um Game Designer?

Ok, beleza! Se um Game Designer faz isso, o que faz um Lead Game Designer? Essa definição também depende do tamanho do estúdio, e de sua estrutura.

Em alguns estúdios, o Lead Game Designer pode ser apenas o designer mais experiente da equipe, alguém ainda no operacional, no “mão na massa” a quem recorrer nas questões mais cabeludas. Ele atua como um “designer de referência”.

Em outros estúdios, os Lead Game Designers atuam em uma camada mais tática ou até mesmo estratégica, atuando efetivamente como o gestor da sua equipe. Por exemplo:

  • Ele estipula diretivas e os padrões de qualidade para a área.
  • Ele determina que designers do time pegam quais funcionalidades ou projetos, baseado em suas características pessoais.
  • Ele acompanha o progresso deles, trazendo mais gente caso algum reforço seja necessário, temporária ou permanentemente.
  • Também lidera os processos seletivos, contratando novos GDs.
  • Ao longo do tempo, avalia seu desempenho, promovendo quando tudo dá certo, e demitindo, quando tudo dá irreversivelmente errado.

Nesse caso, ele mais multiplica o esforço dos membros da sua equipe, deixando que eles se envolvam diretamente com as decisões de design do jogo. Ele não vai dizer “essa funcionalidade tem que ser desse ou daquele jeito”. Ao invés disso, ele vai criar processos e ferramentas para que seus designers consigam sozinhos produzir material que naturalmente já satisfaça seus critérios, por conhecer eles. É um trabalho mais indireto. Esse tipo de Lead é particularmente comum em empresas com muitos projetos diferentes acontecendo ao mesmo tempo ou em empresas grandes, onde mesmo mais de uma camada de liderança de design pode ser encontrada (quando os leads tem leads).

Essa segunda forma de atuar que eu descrevi (a mais tática e estratégica, ao invés da “mão na massa”) é a forma que eu me sinto mais útil, como líder e gestor, e a forma em que fui capaz de atuar nos dois estúdios em que trabalhei nessa função. Quero ser o responsável por criar e proteger um ambiente em que minha equipe possa ser coletivamente criativa. É incrivelmente recompensador, para mim, poder atuar como um capacitador, um coordenador de esforços, enxergando a “floresta pelas árvores” e tomando decisões que, embora possam parecer contraditórias da perspectivas de funcionalidades e pessoas específicas, fazem sentido olhando o(s) projeto(s) como um todo.

É comum também que estúdios possuam outras funções dividindo a liderança de design. Alguns estúdios possuem Diretores Criativos ou Diretores de Jogo que acabam realizando parte da liderança, em geral focando na parte de produto e menos na gestão de pessoas. Produtores e Gerentes de Produto, quando próximos da equipe de design, também podem realizar um papel similar, dividindo parte do peso da liderança (embora eles costumem estar mais focados em responder perguntas de produto como “quais são as reais necessidades do nosso público-alvo?” e “que problemas do nosso jogo, se solucionados, trarão o maior resultado para nós?”).

O personagem impostor do Leonardo DiCaprio no filme “Prenda-me Se For Capaz”. No dia a dia de um estúdio de jogos é muito fácil se sentir que nem ele. Ei! O Tom Hanks também está nesse filme aqui.

E já que eu mencionei a equipe de design…

Uma das coisas mais difíceis, hoje, no Brasil, como Lead Game Designer, é contratar Game Designers. E não porque não existem pessoas interessadas. Pelo contrário! A área de jogos é repleta de pessoas apaixonadas, atentas a esse tipo de oportunidade. No entanto, como gestor, é muito importante contratar responsavelmente: uma contratação errada, “na paixão” apenas, pode prejudicar tanto o seu estúdio quanto a carreira da pessoa que você está contratando. Isso é especialmente verdade para cargos plenos ou sênior, em que é esperado mais autossuficiência do contratado.

Levando isso em consideração, eu costumo prestar bastante atenção a alguns pontos durante os processos seletivos que eu rodo, coisas que procuro em potenciais Game Designers:

  • Teoria de Game Design (e Design no Geral): costumo perguntar sobre livros de game design que o candidato gosta, ou do último artigo de Game Design que ele leu e o fez pirar. Para mim, é importante que o Game Designer tenha uma base sólida nos conceitos, para que possamos discutir a partir deles, de uma fundação comum.
  • Justificativa e Argumentação: eu geralmente passo uma prova como parte do processo seletivo, eu fico muito atento às justificativas dadas pelo candidato às decisões de design nas suas respostas. Se ele está propondo uma funcionalidade de um jeito tal, qual o motivo? Quais são as alternativas, e porque aquela é a melhor de todas? No dia a dia, o Game Designer vai estar o tempo todo se perguntando e sendo perguntado sobre essa ou aquela decisão tomada, e ele precisa ser capaz de, com segurança, explicar que nada é arbitrário e tudo tem uma razão de ser.
  • Comunicação Clara: saber dar respostas completas mas objetivas é algo muito importante também para um GD. Comunicar é grande parte do que ele vai fazer em sua vida profissional. Eu costumo ficar particularmente atento a como o candidato se comunica de forma não verbal, através de tabelas, gráficos, diagramas, etc. Como você deve imaginar (embora, se você chegou até aqui nesse artigo, talvez não) as pessoas não gostam muito de ler; e, em muitos casos, o fluxograma certo da economia do jogo ou o gráfico mostrando os valores correto comunica melhor que 200 páginas de documentação extensa. Vai por mim!
  • Focos em Problemas Reais: como Game Designer, você conhecerá o jogo em que estiver trabalhando profundamente. Isso também significa que você conhecerá suas falhas profundamente, mesmo aquelas que ninguém mais vê. Qualquer coisa, olhada assim, tão de perto, por tanto tempo, parece uma bosta. Para um designer, é realmente importante ser capaz de dar um passo para trás, de tempos em tempos, e se perguntar: “o que eu realmente preciso consertar aqui, e o que pode ficar do jeito que está? Que mudança realmente vai provocar um impacto nesse jogo?”
  • Design Centrado no Usuário: “usuário” frequentemente significa alguém que não é você, por mais que você seja fã do tipo de jogo que está fazendo e o tenha jogado desde que parou de usar fraldas. Um designer deve ser capaz de fazer jogos para outros, e, para isso, é preciso entender e querer entender quem eles são, quais são suas realidades e necessidades, em que perfis de jogador eles se encaixam, e por aí vai. Conhecer as ferramentas e práticas de Design Centrado no Usuário, saber o que elas fazem e que valor trazem é um bom diferencial.
  • Portfólio / Experiência com Engines: é bem comum que eu pergunte para o candidato se ele tem algum portfólio de jogos em que tenha participado no passado para me mostrar. Para uma vaga júnior, ter participado de game jams e ter tentado fazer jogos por conta própria faz bastante diferença, pois mostra interesse e pró-atividade. Hoje em dia, existe um monte de ferramentas e engines que permitem experimentos e até mesmo jogos completos totalmente sozinhos, em um tempo não-infinito. Muitas delas são gratuitas.

Processos seletivos são sempre muito divertidos. Na imagem, a prova Avalanche das “Olimpíadas do Faustão”. Sem relação de uma coisa com a outra, claro.

Para ser honesto, acredito que não ajuda que faculdades de jogos no Brasil e outras instituições de ensino tenham a tendência a formar Game Designers do tipo mais generalista, que fazem de tudo um pouco (arte, programação, design em si, etc). Esses designers podem ser muito úteis em equipes pequenas, mas para estúdios de estrutura mais compartimentada, provavelmente seria mais interessante uma formação focada no design em si. Sinto que falta isso nos cursos de Game Design: uma base em Design mais forte, suas práticas e processos, conforme podem ser aplicados em áreas que não sejam necessariamente a de jogos.

Isso é um dos motivos pelo qual ser um Lead Game Designer é difícil. Mas poucas coisas na vida de um Lead GD são fáceis. Na verdade, a área de jogos não é uma área para quem está atrás de enorme estabilidade e poucos desafios. Como já disseram por aí, todo jogo terminado é como um pequeno milagre. Esse artigo cobre um pouquinho do que é ser um Lead Game Designer, pelo menos da minha pequena experiência sendo um. Tenho certeza que muitas pessoas da indústria vão discordar de muitas das coisas que eu disse por aqui, mas faz parte. Isso acontece pois nossas trajetórias são distintas. Caso você queira conversar mais sobre os assuntos que eu discuti aqui, ou sobre outras coisas relacionadas a fazer jogos, me procure. Eu vou adorar.

]]>
0
Por Trás do Jogo: Desenvolvimento de jogos dentro dos limites http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/04/07/por-tras-do-jogo-desenvolvimento-de-jogos-dentro-dos-limites/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/04/07/por-tras-do-jogo-desenvolvimento-de-jogos-dentro-dos-limites/#respond Tue, 07 Apr 2020 17:30:59 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=266 Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. Hoje temos Arthur Zeferino, programador de jogos há mais de 10 anos, co-criador do GAMESFODA e atualmente trabalhando no Fish Person Shooter.

Se você jogou o primeiro Resident Evil, tanto o original de 1995 quanto o remake, você deve se lembrar das portas, que abriam lentamente e aumentavam a tensão do jogo. Sem saber o que você ia encontrar por trás de cada uma, a animação de alguns segundos parecia levar horas. Se você acha que isso foi intencional, bom, você está parcialmente certo. 

Resident Evil (Capcom 1996)

As portas lentas deixavam o jogo mais assustador e são lembradas até hoje por isso, mas elas também foram um efeito colateral das limitações técnicas da época usadas de forma inteligente pelos designers e programadores do jogo.

O leitor de CDs do PlayStation era lento, e carregar cada sala nova da mansão demorava. O time da CAPCOM podia muito bem só ter usado uma tela tradicional com um “LOADING” no meio e talvez uma barrinha, mas eles resolveram aproveitar a oportunidade pra incluir algo que contribuísse pra ambientação do jogo.

Desenvolver jogos é trabalhar com muitas limitações técnicas, e a maneira como a equipe lida com essas limitações pode fazer muita diferença no produto final. Outro exemplo clássico é o do Metal Gear original, de 1987 para o MSX2. A Konami queria um jogo de ação frenético, cheio de tiros e explosões, mostrando todo o potencial do MSX2 e capitalizando em cima de filmes como RAMBO que estavam em alta na época. O jogo mudou (literalmente) quando a equipe descobriu que o MSX2 era capaz de mostrar no máximo 8 sprites em uma linha por vez. Com cada personagem precisando de 2 sprites e uma sprite pra bala, não ia ser um jogo de ação muito empolgante. Veio então a ideia de um jogo de ação com poucos inimigos, em que a dificuldade estava em se esconder deles. Assim nasceu Metal Gear e talvez até um gênero novo de jogos. 

Metal Gear (Konami 1987)

Hoje, os computadores evoluíram muito e esse tipo de limitação enorme não existe mais. Mas o tamanho dos jogos e a expectativa criada em cima deles também cresceu. Uma parte importante do trabalho dos programadores, designers e artistas é saber conciliar estas expectativas com as limitações que existem.

Você deve ter jogado algum jogo recente que, em algum momento, você sai de uma área grande, entra em um corredor e sai em outra área grande. Existe uma chance bem alta de aquele corredor só existir porque as 2 áreas não cabem na memória ao mesmo tempo e o jogo precisa de um tempo pra descarregar a área anterior e carregar a nova. O corredor faz basicamente o que a porta do Resident Evil fazia, só que sem parar o jogo, mas enquanto você está andando por ele, várias coisas estão acontecendo no background pra garantir que você não perceba a sua verdadeira função.

Metroid Prime (Nintendo/Retro 2002) usava muito essa técnica de corredor como área de transição

Esse tipo de coisa muitas vezes é vista como responsabilidade só da programação, mas a verdade é que se você quer que essas limitações sejam parte do jogo como nesses exemplos, todo o time tem que estar envolvido nisso.

Só nesse exemplo do corredor: os level designers precisam projetar as 2 áreas de acordo com o que cabe na memória do console, também precisam projetar o corredor de forma que possa cumprir essa função (não adianta nada o corredor ser ainda maior que uma das áreas), os artistas precisam colocar seus modelos 3D ou sprites 2D de forma que não sobrecarregue ainda mais o hardware, às vezes reutilizando modelos nas 2 áreas pra que esse carregamento possa ser feito mais rápido –note, inclusive, como um corredor desses normalmente tem poucos detalhes e coisas pra fazer. Aliás, já que não há muito o que fazer no corredor, uma maneira inteligente de distrair o jogador, muito utilizada atualmente, é colocar diálogos nessas partes, trabalho do designer de narrativa, que ainda aproveita pra colocar uma coisinha a mais.

Mass Effect (2007 EA/BioWare) usava elevadores com essa função e aproveitava pra incluir diálogos que enriqueciam os relacionamentos dos personagens.

E de um modo mais geral, fazer um jogo rodar em 1080p ou 4k e em 30 ou 60 quadros por segundo também depende de como o time lida com as limitações do hardware em que eles estão trabalhando.

E eu nem vou entrar no mérito de jogos pra Nintendo Switch e smartphones, que têm um hardware mais limitado, ou VR, que requerem uma resolução mais alta e uma taxa de quadros mais alta.

Talvez você esteja pensando: “Mas isso é nos jogos AAA, eu sou um desenvolvedor independente que só quer fazer uns jogos em pixel-art sem me preocupar com restrições de memória e processamento.”

Bom, nesse caso você provavelmente vai ter outras 2 restrições muito grandes: tempo e dinheiro.

Você não pode ficar desenvolvendo o seu jogo pra sempre e nem tem dinheiro infinito pra gastar, então você vai ter que dar um jeito de terminar isso aí.

Muitos jogos independentes optam por um estilo de arte simples e minimalista. E muitas vezes o resultado é mais bonito do que jogos AAA mega-caros, mas o custo e o tempo que se leva pra fazer uma arte mais simples pesa muito, então se você está pensando em fazer um jogo foto-realista, talvez seja bom pensar melhor.

Não que não existam jogos de times pequenos com gráficos foto-realistas. Eles existem e normalmente têm algum tipo de compensação: um mapa pequeno, fases repetitivas, nenhum modelo de ser humano e por aí vai.

Stories Untold (Devolver/No Code 2017) foi desenvolvido por um time pequeno com gráficos realistas, porém é um jogo curto com poucas áreas e nenhum modelo humano com animações complexas

Se você segue jogos independentes, já deve ter notado como de uns anos pra cá houve um boom de jogos com mapas procedurais. Jogos como Minecraft, Binding of Isaac e Dead Cells, em que as fases são geradas por um algoritmo, garantindo um mapa diferente a cada nova partida. Muitos desenvolvedores usam geração procedural pra tentar diminuir o trabalho de criação de levels, já que, teoricamente, o algoritmo pode gerar uma variedade gigantesca de mapas. E isso é quase sempre um erro porque algo totalmente aleatório nunca funciona direito e os designers e programadores acabam tendo que passar muito tempo ajustando os algoritmos que criam esses mapas pro resultado ficar bom.

Também é comum hoje em dia jogos em que o desenvolvedor se impõe limitações pra criar algo que pareça um jogo antigo. Casos como Sonic Mania, que tenta simular um jogo de Mega Drive, Shovel Knight, que tenta se assemelhar a um jogo de NES, e Return of The Obra Dinn, que tem visuais inspirados em jogos do Macintosh 128K.

Return of The Obra Dinn (Lucas Pope, 2018) usa técnicas bastante complexas e sofsticadas pra atingir um visual monocromático que lembra um computador antigo.

Por simples questões físicas, por mais que os computadores evoluam, sempre existirá algum tipo de limitação técnica no desenvolvimento de jogos. E no melhor caso, mesmo que as leis da física mudem, ainda haverá alguma limitação humana. E é importante que todos os envolvidos no desenvolvimento estejam cientes das limitações pra fazer o melhor jogo possível com elas.

]]>
0
Por trás do jogo: O arquiteto de tudo, o game designer http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/31/por-tras-do-jogo-o-arquiteto-de-tudo-o-game-designer/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/31/por-tras-do-jogo-o-arquiteto-de-tudo-o-game-designer/#respond Tue, 31 Mar 2020 17:00:34 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=256 Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. O André Asai é game designer e produtor da Loud Noises, fez jogos como o Headblaster e é um dos organizadores do Firma Gamedev e do Firmeza.

A versão idealizada, glamourizada e completamente errada que o público tem do game designer é a de que ele é o “cara das ideias”, a pessoa que dita para os outros membros do desenvolvimento como o jogo vai ser. Para essas pessoas, existe um texto perfeito para resumir o trabalho de um game designer, texto “O Problema da Porta” da game designer da Ubisoft Montreal, Liz England:

“A premissa: Você está criando um jogo.

  • Existem portas no seu jogo?
  • O jogador pode abrir portas?
  • O jogador pode abrir TODAS as portas do jogo?
  • Ou algumas portas são apenas para enfeite?
  • Como o jogador vai saber a diferença?
  • As portas que o jogador pode abrir vão ser verdes e as portas que não podem ser abertas vermelhas? Vai ter uma pilha de lixo na frente das portas que você não pode usar? Você vai só remover as maçanetas e dar como resolvido?
  • As portas podem ser trancadas e destrancadas?
  • O que mostra para o jogador que uma porta está trancada e pode ser aberta, ao contrário de uma porta que nunca pode ser aberta?
  • O jogador sabe como destrancar uma porta? Ele irá precisar de uma chave? Hackear um computador? Resolver um puzzle? Esperar até ele chegar em um momento da história?
  • Existem portas que podem ser abertas, mas o jogador pode nunca passar por elas?
  • Da onde os inimigos vêm? Eles aparecem através das portas? As portas se trancam depois?
  • Como o jogador abre a porta? Ele simplesmente anda por ela e a porta corre para dentro da parede? Ela se abre em movimento de arco? O jogador tem de pressionar um botão para abrir a porta?
  • As portas se trancam quando o jogador passa por elas?
  • O que acontece quando existem dois jogadores? A porta irá se trancar apenas quando ambos os jogadores passarem pela porta?
  • O que acontece se a fase for MUITO grande e não dá para todas as portas da fase existirem ao mesmo tempo? Se um jogador ficar muito para trás, o chão pode simplesmente desaparecer debaixo deles. O que você faz?
  • Você impede que o jogador mais avançado prossiga até os dois jogadores estarem na mesma sala?
  • De que tamanho é a porta?
  • Ela tem de ser grande o suficiente para o jogador passar por ela?
  • E em jogo cooperativo? Se o jogador 1 estiver parado em frente à porta – ele irá bloquear o jogador 2?
  • E com aliados que estiverem te seguindo? Quantos conseguem passar pela porta ao mesmo tempo sem ficarem presos?
  • E os inimigos? Os mini-chefes que são grandes precisam passar pela porta?”

Portas não são portas em game design.

Como deu para perceber pelo exemplo acima, o trabalho do game designer é arquitetar a experiência do jogo, que engloba regras, objetivos e desafios. Mas, como isso se traduz para o dia-a-dia?

Em equipes grandes, como em projetos AAA, existirão game designers especializados em parte específicas do jogo. Assim podemos ter o lead designer, que será responsável por tomar decisões que afetam a experiência macro do jogo; o level designer, que será responsável por arquitetar o espaço que o jogador irá ocupar, navegar e interagir; o designer de sistemas, que irá definir como os elementos do jogo interagem entre si, desde como missões irão funcionar dentro de um jogo até variáveis como quantos pontos de experiência o jogador irá receber por derrotar um inimigo específico ou quantos itens o jogador poderá carregar.

Já em equipes pequenas, todos esses papéis são executados ou por uma pessoa específica designada como game designer, ou esses papéis são compartilhados entre todos os membros da equipe, como por exemplo o programador ou artista que também irá desenhar a fase ou criar ou melhorar alguma mecânica.

Engana-se as pessoas que acham que o game designer tem a palavra final a respeito de como um jogo irá funcionar. O game designer pode ser o “arquiteto” do jogo, planejando como o jogo irá se comportar, mas é uma necessidade o constante diálogo entre todas as outras áreas do desenvolvimento, principalmente, como dito no vídeo do Extra Credits sobre game designers, “toda vez que você toma uma decisão como um designer, o que você está fazendo é pedir para as pessoas trabalharem. E trabalho custa tempo e dinheiro, e você tem uma quantidade finita das duas coisas nos seus projetos”. Talvez as duas habilidades mais importantes para o trabalho de um game designer sejam a habilidade de comunicação e a humildade em receber feedbacks, tanto de seus parceiros de trabalho quanto de seus jogadores, para melhorar partes do seu jogo, ou, em casos extremos, descartar partes do seu jogo que não funcionam.

Dito isso, existe uma pequena lista de habilidades que não são exatamente pré-requisitos, mas que serão de grande ajuda para o seu trabalho como game designer:

1 – Habilidade de comunicação textual e pictórica

Como já disse algumas vezes nesse texto, o game designer precisa comunicar ideias, muitas vezes abstratas, para a equipe de desenvolvimento. Grande parte dessa comunicação serão através de documentos, então seria bom se ele estiver escrito de forma sucinta e em português (ou o idioma que você estiver escrevendo) correto e fácil de entender. Quando a linguagem em texto for insuficiente, você pode recorrer a imagens e diagramas para melhor transmitir a informação. Não falo da necessidade de saber desenhar, mas saber caçar imagens e gifs na internet e um conhecimento básico de fotomontagem. Uma imagem, ainda que mal desenhada, vale mais do que mil palavras!

Lindão esse GDD (Vlambeer)

2 – Matemática

Em qualquer jogo, seja digital ou analógico, em algum momento você terá de lidar com números. Pode ser coisas simples, como qual a porcentagem de se tirar o mesmo número se você lança dois dados (a resposta é aproximadamente 0,16% para os curiosos), ou perguntas como “ao derrotar um inimigo, o jogador tem 16% de chance de conseguir uma espada e 32% de chance de conseguir um escudo. Levando em consideração que em uma fase o jogador irá enfrentar 3 monstros iguais, e cada monstro entrega apenas um item, quais as chances do jogador não conseguir nenhum item após as 3 batalhas?” (14,06%). Para isso, o game designer deverá estar preparado para passar um bom tempo realizando cálculos e encarando uma planilha.

O melhor amigo do game designer, a planilha

3 –Conhecimentos gerais de como as outras áreas do desenvolvimento trabalham (Arte, Programação, Áudio, Gráficas)

Como você irá planejar um jogo e pedir trabalho para as outras pessoas sem ao menos saber como essas áreas trabalham?

4 – REPERTÓRIO!

O trabalho de um game designer é desenhar experiências. Como ele irá fazer isso sem ter um repertório generalizado? Não falo apenas de repertório em jogos, uma vez que se você só usa outros jogos como inspiração para seu projeto ele provavelmente ficará derivativo e não acrescentará algo novo, mas repertório de outras mídias, outras experiências e vivências. Shigeru Miyamoto se inspirou em sua experiência de explorar os campos, bosques e cavernas nos arredores de Kyoto quando criança para o Legendo f Zelda, e Satoshi Tajiri se inspirou em sua paixão por insetos e colecionismo para fazer Pokémon. Já tive de desenhar jogos para clientes que foram necessários conhecimentos de como funciona a cadeia de produção e transporte de petróleo e a malha ferroviária brasileira. Assim como qualquer mídia, você pode imprimir estilos estéticos, filosofias e visões de mundo dentro dos seus projetos, de forma consciente ou não. É uma frase clichê, mas você nunca sabe de onde você tirará inspiração para seu próximo projeto.

]]>
0
Por trás do jogo: Direção de Arte para Jogos Independentes http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/por-tras-do-jogo-direcao-de-arte-para-jogos-independentes/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/por-tras-do-jogo-direcao-de-arte-para-jogos-independentes/#respond Tue, 24 Mar 2020 17:00:57 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=242 Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. Hoje o Ricardo Juchem  vai assumir o teclado. Ele é diretor de arte para jogos independentes, com foco em pixel art. O Ricardo não tem formação acadêmica na área de jogos, é formado em teatro, trabalhou por muitos anos em publicidade como webdesigner e há 4 anos trabalha com arte para jogos.

Eu tenho me especializado em arte para adventure games, finalizei recentemente a arte para o Future Flashback e atualmente estou trabalhando no Chinatown Detective Agency, cuja campanha de Kickstarter lançaremos nesta quinta-feira. Ambos os jogos serão lançados até o fim deste ano.

Hoje vou escrever um pouco sobre como foi minha experiência de aprendizado e algumas coisas que me ajudaram neste caminho.

Criando um cenário para o Chinatown Detective Agency.

O que faz um diretor de arte?

O Diretor de Arte (D.A.) é responsável pela concepção artística do jogo, supervisionando e unificando a estética visual do projeto. Ele define a aparência geral do projeto e como ela comunica visualmente, estimula emoções, contrasta elementos (personagens e fundos, por exemplo) e atrai psicologicamente o público-alvo.

O D.A. define o estilo artístico e elementos visuais como fontes e interfaces que serão utilizados no projeto, do começo ao fim, e busca a consistência nisso.

Num projeto de grande porte (AAA), essa visão é repassada para artistas conceituais, artistas assistentes, programadores, artistas visuais e o D.A. supervisiona o trabalho deles, até mesmo aplicado dentro da engine do jogo, procurando com que o visual se mantenha consistente. 

Assassin’s Creed – Raphael Lacoste – Copyright Ubisoft.

Abaixo, uma tradução livre do prefácio the Assassins Creed – The Complete Visual History onde Raphael Lacoste fala sobre a direção de arte da série.

Assassin’s Creed é sobre repensar e reviver a história, e a cada capítulo pretendemos criar mundos plausíveis e imersão crível para nossos fãs. Através da evolução consistente de nossa direção de arte, criamos um estilo distinto e único para o nosso universo. Mas, para mim, a direção de arte também trata da construção de momentos significativos que dão origem a uma ampla gama de emoções. Por isso, acho importante estilizar e enfatizar elementos de paisagens reais, arquitetura icônica e personagens históricos. O mundo de Assassin’s Creed foi criado para despertar a imaginação, viajar no tempo e descobrir locais épicos e testemunhar alguns dos momentos mais importantes da história do mundo.”

– RAPHAEL LACOSTE, Diretor de Arte da marca Assassin’s Creed 

E como funciona a direção de artes nos jogos independentes, Ricardo?

Já em jogos independentes a coisa muda. Por razões orçamentárias, em grande parte dos projetos, o D.A. é o único artista do projeto e acaba acumulando diversas tarefas. Vou falar rapidamente sobre algumas delas a seguir e tentar ilustrá-las com exemplos do meu projeto atual.

Arte Conceitual

A arte conceitual é uma forma de ilustração usada para transmitir o conceito do mundo do jogo. Onde esse jogo se ambienta? Em que época? Quem são as pessoas que habitam ele?

Muitas vezes no começo do projeto uma das artes conceituais é definida como arte-chave (key art) e vai servir para desdobramento de todo o universo do jogo.

 

Key Art para Chinatown Detective Agency.

Design de Personagens

É a definição da aparência física de um personagem baseada na sua cultura, momento histórico, ideologia, posição política, comportamento, sexualidade e outros aspectos.

Toda a complexidade da mente de um ser humano se reflete no exterior, mesmo que seja de forma oposta. O rabugento de bom coração, a criança maléfica, o demônio bom, por exemplo.

Pense em todas essas nuances e suas inversões e seu personagem vai ser crível.

Amira Darma, protagonista de Chinatown Detective Agency.

Design de ambientes

Como é o mundo em que os personagens vivem? No passado? No futuro? Como ele vai afetar o comportamento dele? Como os personagens vão interagir com o mundo? Qual a situação econômica do local?

Respondendo questões como essas você consegue criar uma história de fundo verossímil para os ambientes e os personagens que vivem nele.

O mundo entra em colapso em Chinatown Detective Agency e até as nações mais ricas tem seu panorama mudado.

Design de Interface

São as ideias do game designer transmitidas para uma interface visual, pensando na experiência do usuário. Tipografia, cores, contraste, diagramação da informação na tela. Tudo isso é escolhido com foco na forma com a qual o jogador vai interagir.

Esboço criado por Mark Fillon, game designer do Chinatown Detective Agency.

Interface Gráfica do Chinatown Detective Agency, por Ricardo Juchem.

Além dessas tarefas e funções que citei, em projetos independentes o D.A. pode se envolver também com animação, pós-processamento de imagem, correção de cores e outras coisas.

Nossa, é muita coisa! Como vou aprender tudo isso?

A resposta é… aos poucos. Estudando. Muito. Eternamente.

História, arquitetura, figurino, 3D, anatomia, perspectiva, fotografia, iluminação, cinema, biologia, geografia, religiões, etc. Com o tempo você vai aprender a observar o mundo com um olhar mais focado em entender como as coisas funcionam e aplicar tudo isso em suas artes.

Um tempo atrás fiz uma thread no Twitter com coisas que me ajudaram no meu caminho como artista, talvez isso possa agregar algo no seu caminho, tanto para pixel art como outras mídias.

https://twitter.com/ricardojuchem/status/1189178250288721921

A thread é inglês mas o Twitter tem um bom tradutor interno e para os links, vocês podem usar o Google Tradutor.

Lembra que na introdução de texto eu falei que me formei em teatro? 

Então, eu uso na pixel arte que faço hoje o que aprendi lá. Personagens com uma história de fundo, cenários com cores e climas que trazem sentimentos ao jogador. Tudo isso veio de lá.

Quando fui web designer em agência de publicidade eu aprendi mais sobre cores, tipografia e design de interface. Hoje, isso aí serve para criar caixas de diálogo, interface e iconografia para o jogo.

Todo conhecimento que você adquiriu você pode aplicar nessa área.

Toda pessoa é diferente e tem seu próprio caminho, e isso é uma coisa muito boa na carreira artística. Devido ao seu caminho ser único, sua arte também é pois nenhuma outra pessoa vivenciou o mundo da mesma forma que você.

Ninguém tem sua história de vida, suas decepções, suas vitórias, suas tristezas e seus sonhos. Isso é o que torna você único. E isso é o que vai tornar sua arte única.

Espero que tenham gostado do texto. Se tiverem dúvidas me mandem uma mensagem no Twitter.

]]>
0
Por trás do jogo: o que faz um programador de engine? http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/17/por-tras-do-jogo-o-que-faz-um-programador-de-engine/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/17/por-tras-do-jogo-o-que-faz-um-programador-de-engine/#respond Tue, 17 Mar 2020 19:00:06 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=224 Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. Quem assume a tarefa hoje é Felipe Lira, um programador gráfico especializado no desenvolvimento de Engines Gráficas (motores gráficos). Ele atualmente trabalha na Unity como líder do desenvolvimento do Universal Render Pipeline. Previamente ele trabalhou na Tectoy Mobile desenvolvendo jogos e engine para o Zeebo, na Samsung (SIDIA) na produção de jogos para realidade virtual e dentre outras empresas de desenvolvimento de jogos.

O que é uma engine gráfica?

Pra falar um pouco sobre como é o desenvolvimento de engine, primeiro você precisa saber o que é uma engine gráfica.

Você pode imaginar a engine gráfica como uma caixa preta. Como entrada ela recebe dados de objetos da cena do jogo (câmeras, luzes, modelos, materiais, shaders, texturas), e é responsável por produzir imagens na tela. Uma imagem produzida pela engine gráfica é também chamada de frame.

Engine Gráfica Unity

Um jogo idealmente precisa gerar pelo menos 60 frames por segundo para ter uma boa experiência e jogabilidade. Algumas plataformas de realidade virtual, como o Oculus Quest, precisam gerar taxas de frames ainda mais altas para uma boa experiência. Isso significa que, no mínimo, para se ter uma boa experiência é preciso gerar um frame a cada 16.6ms.

Para ser eficiente, a engine gráfica divide o trabalho de gerar frames em vários passos, que frequentemente podem ser paralelizados. A paralelização pode acontecer tanto na distribuição do trabalho entre CPU e GPU, quanto também em paralelização na própria GPU(Async Compute). O conjunto de passos para gerar uma determinada imagem é chamado de render pipeline.

Um render pipeline simples possui um passo de culling, alguns passos de renderização (render passes) e pós-processamento de imagem. Adrian Courrèges descreve o render pipeline do DOOM 2016 nesse blog

A Unity possui ferramentas no editor que ajudam a visualizar e entender esses passos para os seus render pipelines. Usando o Frame Debugger é possível ver os passos de renderização do BoatAttack.

Um frame do demo BoatAttack.

O demo renderiza uma camera para reflexão planar, shadow map, foam map, desenha objetos opacos de frente pra traz, passo de caustics, skybox, desenha objectos transparentes de trás pra frente e por fim aplica um série de efeitos de pós-processamento.

Você pode encontrar mais detalhes técnicos sobre o Boato Attack neste blog. O projeto está disponível publicamente neste Github.

Agora que você sabe o que é uma engine gráfica. Vou contar um pouco de como é o processo de desenvolver uma.

Como é desenvolver uma engine gráfica

O desenvolvimento e manutenção de uma engine é um ciclo que gira em torno das seguintes perguntas:

  1. Que feature devemos implementar?
  2. Como implementar essa feature?
  3. Como testar a feature?

Ao introduzir uma nova feature na engine, devemos verificar que essa feature atinge as expectativas de quem a solicitou, que ela funciona como esperado nas plataformas que a engine suporta e que ela não introduz nenhum bug ou regressão de performance na engine.

Existe uma grande diferença no processo de desenvolvimento se você está fazendo uma engine especializada para um tipo de jogo ou plataforma ou se você está desenvolvendo uma engine multiplataforma que deve funcionar para uma grande variedade de tipos de jogo e uma quantidade enorme de plataformas, como é o caso da Unity.

Desenvolvendo uma engine gráfica especializada

Quando trabalhei na Tectoy Mobile, fiz parte do time de desenvolvimento da engine gráfica para os jogos Zeebo Extreme. Em alguns estúdios existe a separação do time de desenvolvimento do jogo e do time de engine. Na Tectoy não existia essa separação clara, o time de engine trabalhava junto com o desenvolvimento. A engine foi feita especificamente para aqueles jogos.

Zeebo, console brasileiro lançado em 2009.

Então pra engine do Zeebo, como é o processo de acordo com as 3 perguntas acima?

1) Que funcionalidade devemos feature?
A maioria das funcionalidades são decididas na pré-produção do jogo. O produtor junto com os líderes de projeto definem o backlog dessas features. Em muitos casos, funcionalidades adicionais ou modificações são requisitadas durante a produção do jogo porém, frequentemente, em menor escala de impacto.

2) Como implementar essa feature?
Os jogos Zeebo Extreme tem como plataforma alvo apenas o Zeebo. Sabendo detalhes da arquitetura do Zeebo, e com ajuda de alguns benchmarks de performance podemos tomar a decisão de que estratégia ou nível qualidade é aceitável para essa feature.

3) Como testar a feature?
Na engine do Zeebo tínhamos apenas testes manuais. O desenvolvedor testava manualmente a funcionalidade durante o desenvolvendo. O time de QA validava a funcionalidade. Testes de regressão de qualidade ou performance eram apenas feitos em releases internos ou externos do jogo pelo time de QA.

Ok. Então vamos dar um exemplo de uma funcionalidade na engine do Zeebo. Sabíamos que Zeebo tinha um poder de processamento gráfico bem pequeno. O que significa que precisávamos ter um sistema de culling agressivo, i.e, remover o máximo possível de objetos nao visiveis pela camera, incluindo objetos ocludidos por outros objetos. (occlusion culling). Logo, 1) que feature devemos feature?, Occlusion Culling.

Como nós sabíamos que era uma engine para jogos de corrida e fazer um sistema genérico de occlusion culling em CPU era muito custoso pro Zeebo, nós implementamos um sistema de oclusão baseado por waypoints. Nesse sistema, o artista dividia as pistas em vários segmentos (waypoints). Em uma ferramenta offline, para cada waypoint, nós pré computamos uma lista visível de triângulos. O artista colocava planos de oclusão no modelo da pista e esses planos eram apenas usados para computar essa lista de triângulos. Essa informação de triângulos era guardada em um formato específico de modelo feito pra engine e o jogo apenas decidir em qual waypoint carregar quais segmento da pista. Nesse caso a resposta para 2) Como implementar essa feature?, será implementado com um sistema de waypoints e pré processamento offline.

Finalmente, 3) Como testar a feature?, o desenvolvedor testa o sistema de oclusão em uma pista, verifica que funciona. O time de QA testa nas demais pistas. Geramos uma build do jogo e verificamos que a performance usando o sistema de oclusão é melhor que não usá-lo. A feature é considerada entregue. (definition of done)

Uma outra facilidade de estar desenvolvendo uma engine para um time específico é a manutenção da engine é bem mais simples e rápida. Se precisarmos atualizar o formato do arquivo de oclusão ou alguma API pública da engine, apenas informamos o time de desenvolvimento para atualizar a API e os arquivos na próxima versão. Simples e rápido.

Desenvolvendo uma engine gráfica em multiplataforma

Desenvolver uma engine gráfica multiplataforma como a Unity é um processo bem mais complexo. A Unity suporta uma variedade diferente de jogos e roda em diversas plataformas.

Uma solução que funciona bem para um jogo ou plataforma pode não necessariamente ser uma boa opção em outras plataformas. A Unity ainda suporta plataformas antigas que usam OpenGL ES 2.0. Isso é um fator bastante limitante quanto a escolhas em como implementar funcionalidades novas, afinal essas funcionalidades precisam funcionar em todas as plataformas.

Então pra engine do Unity, vou explicar como é o processo de desenvolvimento de acordo com as três perguntas acima para o Universal Render Pipeline.

1) Que funcionalidade devemos feature?
O time de desenvolvimento cria um backlog de features desejáveis. Coletamos feedback do time de PM (Product Management), do time que faz interface com clientes com suporte premium (Enterprise Support), e feedback dos usuários no fórum do Universal Render Pipeline. Com todas essas informações, criamos um backlog de features público, contendo apenas features planejadas para um curto ou médio prazo. Os usuários podem ainda votar nesse backlog, o que pode mudar a priorização dessas features. Baseado nesse em todo o feedback recebido, nós priorizamos as features no backlog.

Além disso, a Unity contém Analytics que pode ser opcionalmente ligado ou desligado pelos usuários. O Analytics nos informa quais features são mais ou menos usadas, e podemos usar esse tipo de informação para priorizar suporte ou deixar de dar suporte para algumas features ou plataformas.

2) Como implementar essa feature?
Cada feature na engine possui um custo de manutenção. Como suportamos uma quantidade grande de usuários e plataformas esse custo é alto. Logo, introduzir features muito específicas para um tipo de jogo ou plataforma não é recomendado pois isso cria uma fragmentação de features e aumenta o custo de manutenção. Ao pensar em como implementar uma feature, pensamos em um solução que seja adequada para a maioria dos jogos e plataformas. No Universal Render Pipeline, nós priorizamos o design de features que escalam em termos de performance para plataformas mobile e Nintendo Switch. Isso significa que um maior foco na estratégia de desenvolvimento e testes de performance são feitas nessas plataformas. Na grande maioria dos casos as estratégias adotadas para mobile escalam bem para desktop e consoles. Já o High Definition Render Pipeline (HDRP), contém otimizações específicas que só são suportadas em consoles e última geração de placas gráficas desktop. Isso é possível porque o HDRP só suporta um grupo de plataformas de alta performance.

Em alguns casos, uma solução específica para uma determinada feature seria mais adequada. Para isso, além de desenvolver as features que escalam para todas os tipos de jogos e plataformas, nós também desenvolvemos pontos de customização na engine que permitem usuários mais avançados extrair o máximo da engine usando soluções específicas.

3) Como testar a feature?
Na Unity nós usamos demos ou pequenas produções para validar novas features e também para usar esses projetos como testes manuais para evitar regressões de qualidade ou performance. Isso é chamado de Production Driven Development. O Boat Attack é um dos projectos que usamos para validar novas features e fazer release QA no Universal Render Pipeline.

Boat Attack é usado para validar múltiplas features gráficas.

Além de usar pequenas produções, nós escrevemos testes gráficos para validarem que a feature funciona. Um teste gráfico contém uma imagem de referência que diz o resultado esperado da renderização de uma feature e o framework de testes compara a imagem gerada pelo render pipeline com a imagem referência pixel a pixel. Cada nova feature ou bugfix deve adicionar um teste. Esses testes são rodados automaticamente por máquinas de testes (Continuous Integration) e o código só pode ser introduzido na engine quando o grupo de todos os testes automatizados passarem. Por exemplo, esse é um pull request (PR) para corrigir um bug no Universal Render Pipeline. Como podemos ver, o PR contém uma seção de testes manuais e automáticos necessários para validar que o bug foi corrigido efetivamente. Esse tipo de paradigma orientado a testes é chamado de TDD (Test Driven Development) e é bastante eficaz. Testes não só ajudam a evitar regressões como também ajudam a validar a feature. Muitos problemas de design são detectados ainda na fase de escrita de testes automatizados.

No Universal Render Pipeline, ainda não temos testes automatizados de performance. O time está trabalhando em um framework de performance de testes gráficos utilizando o framework de testes para performance. A maioria dos testes de performance são feitos manualmente antes do release de uma nova versão. Estamos adicionando agora testes automatizados para Android, o que vai facilitar bastante o processo de desenvolvimento para essa plataforma.

Uma outra dificuldade é quanto a atualização da engine. Nós não podemos simplesmente atualizar uma API pública ou mudar a representação de dados de objetos. Isso causaria uma quantidade enorme de jogos terem problemas de compilação ou simplesmente não funcionar como esperado até que o desenvolvedor atualize manualmente o projecto para  próxima versão. É recomendado que sempre haja um upgrade automático de API e dados. A Unity suporta vários mecanismos que nos permite atualizar automaticamente scripts e objetos no projeto. Quando isso acontece, no próximo update o usuário recebe uma caixa de diálogo informando que um update do projeto acontecerá.

Na maioria dos casos escrever o upgrade automático e validar que ele funcionar é mais trabalhoso do que implementar a nova feature ou corrigir o bug. O famoso “o molho sai mais caro que o peixe”.

Para casos que um upgrade automático não é possível, escrevemos um documento chamado “Upgrade Guide” para cada nova versão. Ao ler esse documento os usuários sabem que processos manuais devem aplicar em seus projetos para usar a nova versão.

]]>
0
Por trás do jogo: O que faz um designer de narrativa (quando ele existe)? http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/10/por-tras-do-jogo-o-que-faz-um-designer-de-narrativa-quando-ele-existe/ http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/2020/03/10/por-tras-do-jogo-o-que-faz-um-designer-de-narrativa-quando-ele-existe/#respond Tue, 10 Mar 2020 17:30:51 +0000 http://thaisweiller.blogosfera.uol.com.br/?p=212

Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. Quem pega o teclado hoje é Maíra Testa, game designer e designer de narrativas com quase dez anos de experiência. Além de seu trabalho estar presente em jogos de PC, mobile e consoles, a Maíra também participa da organização do Firma Gamedev e do Dev Migas+

Um jogo não existe sem design. Não estou falando aqui da existência da figura do game designer (acredite, muitos jogos já foram feitos sem que alguém tivesse esse papel) mas sim do design mesmo – qual é a forma do jogo e principalmente como ele funciona. Nesse sentido, como o jogo funciona está profundamente ligado ao que o jogo é. Pense por um minuto sobre como costumamos descrever um filme para alguém. “A Viagem de Chihiro” é um filme sobre uma menina que se perde dos seus pais e vai parar na casa de banho dos espíritos. “Clube da Luta” é sobre um cara insone que conhece um vendedor de sabão e juntos eles montam um clube violento.

Quando descrevemos um jogo, a descrição geralmente começa em como ele funciona. “GTA” é um RPG de roubar carros e viver a vida louca. “The Secret of Monkey Island” é um point and click com piratas caribenhos. Embora muitos jogos não tenham necessariamente um plot – uma trama que é desenvolvida no curso do jogo – eles sempre tem uma narrativa. A narrativa não é objetivamente a história do jogo; não é exatamente sobre o que ele é, mas como ele é, qual é a experiência e a sequência de acontecimentos. Vamos falar de narrativa nesse texto como a cola que traz contexto e coesão para o que o jogo é e como ele funciona.

A função do Designer de Narrativa é relativamente nova dentro da cadeia de produção de um jogo. Ele não é um roteirista – responsável pela criação, elaboração e construção narrativa dos textos e diálogos do jogo – e também não é um game designer no sentido clássico. O designer de narrativa fica numa função intermediária, quase uma especialização do game design, em que ele desempenha o papel da ponte entre o design e a experiência do jogo. Se supõe, é claro, que essa experiência envolva uma história, algo que está sendo contado no decorrer do jogo, seja essa mensagem direta (desenvolvida num plot) ou indireta.

Há muitas formas de contar uma história, e a grande vantagem dos joguinhos eletrônicos é que é um meio de muitas possibilidades. Todo meio de comunicação dispõe de ferramentas que são inerentes ao seu formato – qualquer meio audiovisual dispõe, é claro, de áudio e vídeo, enquanto meios impressos dispõem de ilustrações e texto – e também de sua peculiaridade. O cinema tem a edição, a possibilidade de conectar conceitos e espaços justapondo imagens. A HQ tem os quadros, também capazes de transmitir noções de tempo e espaço.

Os jogos tem a interação. Parece papo de aula de semiótica, mas essa mudança no posicionamento de quem consome e recebe a mensagem altera o que pode ser dito. E, principalmente, como. Podemos pensar em inúmeras formas de transmitir angústia: pela escolha das cores no cenário, pela animação do caminhar mais pesado de uma personagem, pelo som angustiante ou uma música mais tensa, pelos ângulos cortados de câmera, por uma mecânica que exige reflexos rápidos e quebra um padrão de menos ação predominante no resto do jogo. Todos esses elementos trabalham juntos para entregar o contexto (um momento de angústia) com coesão. Todas essas ideias podem vir de diferentes departamentos da produção, do designer de cenários ao designer de som, mas a responsabilidade de traçar o caminho narrativo que leva ao momento de angústia e garantir que essa experiência está sendo passada como a história pede é o designer de narrativa – quando ele existe, claro.

Alan Wake é um exemplo de como o cenário, o gameplay e a trilha ajudam a compor a sensação de angústia e perda tratada na narrativa

Muitos estúdios não tem demanda para alguém dedicado a esse aspecto do jogo. Cada projeto exige uma estrutura diferente de profissionais, e nem sempre um jogo ou todos os momentos dele pedem contexto ou coesão. Vamos falar de um exemplo que gosto muito de usar.

Em certo ponto de “Uncharted 2”, o jogador é apresentado a uma missão stealth. No contexto, o jogador precisa entrar em um museu para roubar uma lâmpada a óleo fortemente guardada, e não pode atrair atenção para a sua presença lá dentro. Nathan Drake é o cara que mais atira sem critérios no mundo dos games, então o jogo propõe um desafio interessante que quebra a mecânica padrão e reforça um momento da narrativa. Uma nova mecânica stealth (apagar um inimigo e arrastá-lo para outro lugar) é introduzida para reforçar o caráter da missão.

Durante todo o gameplay da mansão, o jogador avança sem disparar um tiro, se escondendo nas sombras e atrás das muretas para emboscar e silenciar os guardas, um a um. Em certo ponto, o jogador recebe a única arma não-letal de toda a franquia Uncharted, uma arma que dispara dardos tranquilizantes. Aqui o jogo mistura a mecânica base com as recém-adquiridas habilidades stealth do jogador, abrindo caminho para uma nova possibilidade de enfrentar seus inimigos no resto do jogo, certo?

Não. Para essa missão, os dardos tranquilizantes são sua única alternativa, mas eles ficam indisponíveis depois dela. Assim que coloca as mãos na lâmpada a óleo, um plot point importante acontece (spoilers), e Nathan Drake logo está de volta ao que faz melhor: atirar sem escrúpulos.

Aqui, a coesão existe dentro do level do museu, reforçando o contexto, mas não se estende para fora dele. Apesar de não concordar com a escolha – abrir a possibilidade de usar a arma tranquilizante a qualquer momento traria uma dinâmica nova para a mecânica base, na minha opinião – entendo que essa foi uma escolha de design. O personagem principal estava inserido num contexto que exigiu uma abordagem nova (mecânica), mas os acontecimentos da história naquele episódio eram mais importantes na narrativa do que essa mudança de modus operandi. O jogo abre um parênteses para passar uma mensagem do plot e descarta estes artifícios durante o resto da história.

O designer de narrativa, então, é de certa forma o defensor da experiência. Ele tenta trazer todos os departamentos para uma mesma visão da mensagem que o jogo quer passar naquele momento, do que está acontecendo na narrativa e como os personagens e o ambiente reagem àquilo. Ele elabora a narrativa do jogo (Qual a história? Qual o contexto? Qual o plot?) e pode sugerir mecânicas, construir novos sistemas, trabalhar com os departamentos de arte e som para enriquecer a construção do universo do jogo. Em muitos estúdios o designer de narrativa também cumpre o papel do roteirista, para manter as equipes mais enxutas, mas é um acúmulo de funções; elaborar textos não é sua função mais importante. Textos são uma maneira relativamente barata de transmitir uma mensagem, mas também menos eficiente, visto que o jogador sempre pode escolher simplesmente não ler. Um bom design de narrativa amarra vários aspectos do jogo ao contexto, e o texto contribui com o todo em vez de carregar a mensagem por si só. Isso não significa que um jogo com texto brilhante não tenha uma boa narrativa, porém o texto é mais eficiente quando a mecânica base do jogo – como ele funciona – dá peso a ele. 

Disco Elysium” conquistou corações (o meu incluso) com um misto de texto bem elaborado e mecânica construída em torno e a partir do significado do texto. Um sistema alimenta e suporta o outro, e o centro da experiência é a narrativa.

Thought Cabinet, sistema de Disco Elysium que costura reflexões profundas do personagem na mecânica base do jogo

Spec Ops: The Line” é um exemplo brilhante de como é possível reconstruir um gênero – jogos de tiro com temática de guerra – com o uso coerente de recursos narrativos do jogo para contar uma história, da mesma forma que “Bioshock”, anos antes, se propôs a criar um FPS com história.

Muitos momentos de Spec Ops: The Line colocam o jogador em situações desconfortáveis em que ele sente que a única escolha que poderia fazer é não jogar

Mas então eu preciso ter um designer de narrativa no meu projeto? Não há resposta certa. Para garantir meu emprego eu diria CLARO QUE SIM, porém é o tamanho da sua equipe, ou a própria natureza do seu jogo, que vão ditar se você precisa de alguém dedicado a esse papel. Em equipes pequenas e bem entrosadas, é comum o design de narrativa ser descentralizado, uma responsabilidade dividida entre todos, fazendo com que a figura de um designer de narrativa no projeto tenha um papel mais próximo do roteirista. A dica que posso deixar é que, se seu projeto por qualquer motivo não comporta um designer de narrativa, tenha alguém no seu time que consiga defender a visão do tema central e esteja sempre atento à coerência da história e da mensagem. Esse carinho já é capaz de transformar a experiência do jogo e explorar melhor o potencial das histórias que só os jogos permitem que a gente conte.

]]>
0