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A diversão e a magia do game design (ou como as salsichas são feitas)

Thais Weiller

16/07/2019 08h00

Forager

O game "Forager" foi criado com a ferramenta GameMaker

Dizem que se você descobrir como a salsicha é feita, você nunca mais comeria uma. Tendo nascido no interior, eu não concordo com isso. Vi praticamente como todas as comidas, animais e vegetais, são feitas. Inclusive, um abatedouro de frangos foi minha primeira e única excursão durante o primário, imagino que a escola esperava que muitos de seus pupilos, um dia, trabalhariam na tal linha de produção. Acho que a familiaridade com os meios de produção traz um conhecimento mais íntimo do que compõe o item em questão: os sacrifícios, o trabalho, as origens. Se esse conhecimento te inspira respeito ou nojo pelo tal item, isso aí depende de cada um. Claro, nem toda salsicha é feita exatamente da mesma forma, mas há alguns processos que são comuns a quase todas as salsichas.

Essa é  a mesma relação que tenho com jogos, embora só tenha me familiarizado com os meios de produção dos mesmos muito depois do primário. No primário, inclusive, achava que jogos eram partes iguais de diversão e mágica, o tipo de coisa que não poderia ter sido feita por mãos humanas, mas sim por elfos ou fadas ou algo do gênero. Por isso, jamais considerei sequer que desenvolvimento de jogos fosse uma opção possível para um ser humano, quanto mais no Brasil, quanto mais eu. Ainda bem que a gente cresce, né? E quando cresce, nossas percepções se tornam mais objetivas.

Acho que a familiaridade com os meios de produção traz um conhecimento mais íntimo do que compõe o item em questão: os sacrifícios, o trabalho, as origens

Quando, de fato, comecei a trabalhar com jogos, ainda achei o processo de desenvolvimento meio mágico mas, em especial, meio… confuso. E sim, até hoje acredito que é impossível fazer um jogo sem um pouco de confusão no processo. Mas quanto mais jogos fiz, mais experiência adquiri do trabalho e da convivência com outros desenvolvedores incríveis, mais vívido o caminho ficou para mim e mais respeito eu desenvolvi sobre cada aspecto de jogos já lançados. Inclusive, rejogar títulos que joguei antes de adquirir esse conhecimento me faz vê-los sob uma nova luz, não só a da nostalgia, mas também da profunda admiração dos profissionais envolvidos nesse trabalho e respeito por cada uma das decisões. Às vezes, até um vislumbre de limitações contornadas por soluções espertas.

Doom II

Por exemplo, jogar "Doom II" como uma criança era extremamente divertido, liberador e me fazia me sentir como uma cuzona foda, tudo isso em 3D. Não era o primeiro jogo "3D" que eu jogava, eu joguei "Wolfenstein 3D" antes, mas "Doom II" era superior por um motivo bem simples: você não precisava matar cachorros. Jogando "Doom II" hoje ainda me faz sentir assim, mas também me trás um novo nível de apreço pelo 3D falso, pelo level design bem pensado, pela forma que ele te conduz por um gameplay que nem todos haviam experimentado ainda.

Hoje, temos ferramentas de desenvolvimento de jogos acessíveis à maioria dos que querem entrar nessa área. A Unity, a engine de jogos mais usada do mundo, é grátis; o GameMaker Studio 2 e Construct 3 não exigem conhecimento nenhum de programação para serem usados e todos os dias centenas de tutoriais e aulas são colocadas no youtube ensinando a usar essas engines, a fazer gráficos, a modelar, a entender game design… Ainda assim, nem todos os jogadores têm interesse em fazer seu próprios jogos, assim como nem todos os apreciadores de cachorro-quente querem fazer suas próprias salsichas, ou como eu não comecei a trabalhar na linha de abate de frangos.

Eu joguei "Wolfenstein 3D" antes, mas "Doom II" era superior por um motivo bem simples: você não precisava matar cachorros

Foi assim que tive a ideia deste blog: trazer um pouco do que acontece por trás da tela para quem só está acostumado a ver o produto final, mostrar o que acontece nos meses e anos antes de lançar um único título. Mesmo que você não queira fazer jogos, entender essa dança que acontece nos bastidores do que ocorre em um estúdio e como a realidade do desenvolvimento altera drasticamente o que você vê em sua tela pode lhe dar uma visão completamente diferente de seus títulos favoritos. Quiçá, até permitir amá-los de uma forma que talvez você não achasse possível antes. Ou você pode, sei lá, ficar com nojo. Fica a seu critério.

Sobre a autora

Thais Weiller é mestre pela ECA-USP pesquisando game design, com uma dissertação que virou um livro e um blog. Ela trabalhou em games como “Oniken”, “Odallus”, “Finding Monsters”, “Rainy Day” entre outros, e também fundou, junto com Danilo Dias, a desenvolvedora JoyMasher. Atualmente, Thais dá aulas de design de jogos na PUC do Paraná.

Sobre o Blog

Quais os mitos e fantasias que influenciam nosso comportamento e afetam nossa paixão pelos games? Neste espaço, Thais vai trazer a perspectiva dos pesquisadores e desenvolvedores de jogos para nos ajudar a entender os games de uma maneira diferente.