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Por Trás do Jogo: O Tal do Lead Game Designer

Thais Weiller

14/04/2020 14h30

Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. O Ygor Speranza vai falar hoje sobre o trabalho de um lead game designer. O Ygor é formado em matemática aplicada pela UFRJ e tem um mestrado em Computação Gráfica. Ele trabalha com desenvolvimento de software há 10 anos e com desenvolvimento e design de games há 5 anos. Atualmente é Lead Game Designer da Hoplon, responsável pelo Heavy Metal Machines.

Crédito: istock

É tudo bem estranho. Bem estranho. Lá fora, uma pandemia de efeitos apocalípticos faz aquilo que eu tenho para dizer parecer superficial. Não tão importante assim. Eu entendo. Não esquenta. Este texto ainda vai estar aqui (ou em algum outro lugar, eu tenho certeza) quando tudo isso acabar. E isso vai acabar. Agora: se, por outro lado, você está fazendo a sua parte, quarentenado, e sempre quis saber como é ser um Lead Game Designer, aproveite a clausura e continue aqui comigo.

Escrevi este texto com as mãos devidamente lavadas.

Mas quem sou eu? A probabilidade maior é que você não faça a menor ideia. Sendo assim: eu sou o Ygor. Sou carioca. Acredite se quiser, sou formado em Matemática Aplicada. Meus primeiros trabalhos foram como programador, fora ainda da área de jogos, empregado em uns três setores completamente nada a ver com games. Tendo amado e me interessado por jogos desde criança, não consegui ficar muito tempo longe. Comecei com uma vaga de programador em um estúdio carioca, a Nano Studio. Depois, me juntei a empresa de um amigo de Nano, a Midipixel, formando assim um time indie de duas pessoas, time esse que me deu meu primeiro jogo lançado, o Warlock's Tower. O Warlock's me deu muitas alegrias: com ele ganhamos prêmios do SBGames ("Melhor Game Design" e "Melhor Jogo Em Desenvolvimento" em 2015); participamos de diversos eventos, fazendo muitos e muitos amigos; aprendemos para caralho; e publicamos em diversas plataformas (PC, Mac, Android, iOS, PS4, PSVita, Xbox e Switch!), isso sem contar a integração com o Twitch. Tudo deu bastante trabalho, e eu ainda teria feito muitas coisas diferentes se voltasse no tempo. Mas nada vai tirar o puta orgulho que eu tenho desse joguinho monocromático, que eu não consigo desinstalar do meu celular mesmo quando não tenho mais espaço para outras coisas.

(Werther, na esquerda, e eu. 100% da Midipixel cabendo num sofá.)

Alguns meses depois do lançamento do jogo, em 2017, desejoso de uma mudança de ares, participei de um processo seletivo da Tapps Games e fui chamado para ser um dos Lead Game Designers de lá. O salário fixo me permitiria desbloquear algumas partes ainda "travadas" na minha vida pessoal. Eu aceitei, devolvendo a Midipixel às mãos de seu fundador, e fui para São Paulo, onde a Tapps fica. Toda a experiência foi bastante louca, com a quantidade enorme de experiências novas que essa mudança exigiu. A Tapps até hoje continua sendo o maior estúdio de jogos de que eu fiz parte, numericamente falando: pouco tempo depois que eu entrei, ela ultrapassou a marca dos 150 funcionários. Fiquei lá do meio de 2017 até o final de 2018, quando recebi uma proposta da Hoplon. Vim para cá para Florianópolis no início de 2019, e é aqui que estou agora.

(Quer dizer: não "agora". Agora eu estou em casa. Você também deveria estar!)

Aqui, na Hoplon, minha função, assim como era na Tapps, é a de Lead Game Designer. E o que faz um Lead Game Designer?

Antes da gente continuar, contudo, vou fazer uma outra pergunta: o que faz um Game Designer?

Essa é uma boa pergunta. Pense no Game Designer como o "projetista" do jogo. É ele que normalmente produz as definições de como tudo deve funcionar, de forma geral. Se existe uma documentação de como as coisas devem ser feitas pelos criadores de um jogo, ele costuma ser o primeiro a escrevê-la, e muitas vezes é o único. Ele é quem costuma fazer os mapas e plantas dos jogos que você joga. Assim como, em muitos estúdios, é ele quem desenha os layouts das telas (onde vão os botões, onde vão os textos, etc). Se um jogo precisa de certas quantidades numéricas exatas para funcionar (número de dinheiro dado por cada monstro, o poder de ataque de cada arma, esse tipo de coisa), provavelmente foi um Game Designer que se estressou por dias, em certos casos semanas, até achar o valor final (não necessariamente tendo ficado satisfeito com ele).

Como esse trabalho todo é distribuído ou acumulado em pessoas dentro de um estúdio costuma depender de seu tamanho: estúdios grandes podem especializar seus Game Designers, em subdivisões como Level Designers, Game Play Designers, UI Designers, System Designers, Content Designers, e por aí vai. E o contrário também é verdade: em estúdios pequenos, é muito comum que esse trabalho seja distribuído entre todos os integrantes da equipe. Na Midipixel, por exemplo, que era só eu e Werther, eu fui o designer principal das mecânicas e monstros, enquanto o Werther projetou as telas. Com relação ao Level Design, nossa divisão ficou perto de meio a meio.)

Tom Hanks como inventor de brinquedos no Filme "Quero Ser Grande". Será que foi por causa desse filme que eu virei um Game Designer?

Ok, beleza! Se um Game Designer faz isso, o que faz um Lead Game Designer? Essa definição também depende do tamanho do estúdio, e de sua estrutura.

Em alguns estúdios, o Lead Game Designer pode ser apenas o designer mais experiente da equipe, alguém ainda no operacional, no "mão na massa" a quem recorrer nas questões mais cabeludas. Ele atua como um "designer de referência".

Em outros estúdios, os Lead Game Designers atuam em uma camada mais tática ou até mesmo estratégica, atuando efetivamente como o gestor da sua equipe. Por exemplo:

  • Ele estipula diretivas e os padrões de qualidade para a área.
  • Ele determina que designers do time pegam quais funcionalidades ou projetos, baseado em suas características pessoais.
  • Ele acompanha o progresso deles, trazendo mais gente caso algum reforço seja necessário, temporária ou permanentemente.
  • Também lidera os processos seletivos, contratando novos GDs.
  • Ao longo do tempo, avalia seu desempenho, promovendo quando tudo dá certo, e demitindo, quando tudo dá irreversivelmente errado.

Nesse caso, ele mais multiplica o esforço dos membros da sua equipe, deixando que eles se envolvam diretamente com as decisões de design do jogo. Ele não vai dizer "essa funcionalidade tem que ser desse ou daquele jeito". Ao invés disso, ele vai criar processos e ferramentas para que seus designers consigam sozinhos produzir material que naturalmente já satisfaça seus critérios, por conhecer eles. É um trabalho mais indireto. Esse tipo de Lead é particularmente comum em empresas com muitos projetos diferentes acontecendo ao mesmo tempo ou em empresas grandes, onde mesmo mais de uma camada de liderança de design pode ser encontrada (quando os leads tem leads).

Essa segunda forma de atuar que eu descrevi (a mais tática e estratégica, ao invés da "mão na massa") é a forma que eu me sinto mais útil, como líder e gestor, e a forma em que fui capaz de atuar nos dois estúdios em que trabalhei nessa função. Quero ser o responsável por criar e proteger um ambiente em que minha equipe possa ser coletivamente criativa. É incrivelmente recompensador, para mim, poder atuar como um capacitador, um coordenador de esforços, enxergando a "floresta pelas árvores" e tomando decisões que, embora possam parecer contraditórias da perspectivas de funcionalidades e pessoas específicas, fazem sentido olhando o(s) projeto(s) como um todo.

É comum também que estúdios possuam outras funções dividindo a liderança de design. Alguns estúdios possuem Diretores Criativos ou Diretores de Jogo que acabam realizando parte da liderança, em geral focando na parte de produto e menos na gestão de pessoas. Produtores e Gerentes de Produto, quando próximos da equipe de design, também podem realizar um papel similar, dividindo parte do peso da liderança (embora eles costumem estar mais focados em responder perguntas de produto como "quais são as reais necessidades do nosso público-alvo?" e "que problemas do nosso jogo, se solucionados, trarão o maior resultado para nós?").

O personagem impostor do Leonardo DiCaprio no filme "Prenda-me Se For Capaz". No dia a dia de um estúdio de jogos é muito fácil se sentir que nem ele. Ei! O Tom Hanks também está nesse filme aqui.

E já que eu mencionei a equipe de design…

Uma das coisas mais difíceis, hoje, no Brasil, como Lead Game Designer, é contratar Game Designers. E não porque não existem pessoas interessadas. Pelo contrário! A área de jogos é repleta de pessoas apaixonadas, atentas a esse tipo de oportunidade. No entanto, como gestor, é muito importante contratar responsavelmente: uma contratação errada, "na paixão" apenas, pode prejudicar tanto o seu estúdio quanto a carreira da pessoa que você está contratando. Isso é especialmente verdade para cargos plenos ou sênior, em que é esperado mais autossuficiência do contratado.

Levando isso em consideração, eu costumo prestar bastante atenção a alguns pontos durante os processos seletivos que eu rodo, coisas que procuro em potenciais Game Designers:

  • Teoria de Game Design (e Design no Geral): costumo perguntar sobre livros de game design que o candidato gosta, ou do último artigo de Game Design que ele leu e o fez pirar. Para mim, é importante que o Game Designer tenha uma base sólida nos conceitos, para que possamos discutir a partir deles, de uma fundação comum.
  • Justificativa e Argumentação: eu geralmente passo uma prova como parte do processo seletivo, eu fico muito atento às justificativas dadas pelo candidato às decisões de design nas suas respostas. Se ele está propondo uma funcionalidade de um jeito tal, qual o motivo? Quais são as alternativas, e porque aquela é a melhor de todas? No dia a dia, o Game Designer vai estar o tempo todo se perguntando e sendo perguntado sobre essa ou aquela decisão tomada, e ele precisa ser capaz de, com segurança, explicar que nada é arbitrário e tudo tem uma razão de ser.
  • Comunicação Clara: saber dar respostas completas mas objetivas é algo muito importante também para um GD. Comunicar é grande parte do que ele vai fazer em sua vida profissional. Eu costumo ficar particularmente atento a como o candidato se comunica de forma não verbal, através de tabelas, gráficos, diagramas, etc. Como você deve imaginar (embora, se você chegou até aqui nesse artigo, talvez não) as pessoas não gostam muito de ler; e, em muitos casos, o fluxograma certo da economia do jogo ou o gráfico mostrando os valores correto comunica melhor que 200 páginas de documentação extensa. Vai por mim!
  • Focos em Problemas Reais: como Game Designer, você conhecerá o jogo em que estiver trabalhando profundamente. Isso também significa que você conhecerá suas falhas profundamente, mesmo aquelas que ninguém mais vê. Qualquer coisa, olhada assim, tão de perto, por tanto tempo, parece uma bosta. Para um designer, é realmente importante ser capaz de dar um passo para trás, de tempos em tempos, e se perguntar: "o que eu realmente preciso consertar aqui, e o que pode ficar do jeito que está? Que mudança realmente vai provocar um impacto nesse jogo?"
  • Design Centrado no Usuário: "usuário" frequentemente significa alguém que não é você, por mais que você seja fã do tipo de jogo que está fazendo e o tenha jogado desde que parou de usar fraldas. Um designer deve ser capaz de fazer jogos para outros, e, para isso, é preciso entender e querer entender quem eles são, quais são suas realidades e necessidades, em que perfis de jogador eles se encaixam, e por aí vai. Conhecer as ferramentas e práticas de Design Centrado no Usuário, saber o que elas fazem e que valor trazem é um bom diferencial.
  • Portfólio / Experiência com Engines: é bem comum que eu pergunte para o candidato se ele tem algum portfólio de jogos em que tenha participado no passado para me mostrar. Para uma vaga júnior, ter participado de game jams e ter tentado fazer jogos por conta própria faz bastante diferença, pois mostra interesse e pró-atividade. Hoje em dia, existe um monte de ferramentas e engines que permitem experimentos e até mesmo jogos completos totalmente sozinhos, em um tempo não-infinito. Muitas delas são gratuitas.

Processos seletivos são sempre muito divertidos. Na imagem, a prova Avalanche das "Olimpíadas do Faustão". Sem relação de uma coisa com a outra, claro.

Para ser honesto, acredito que não ajuda que faculdades de jogos no Brasil e outras instituições de ensino tenham a tendência a formar Game Designers do tipo mais generalista, que fazem de tudo um pouco (arte, programação, design em si, etc). Esses designers podem ser muito úteis em equipes pequenas, mas para estúdios de estrutura mais compartimentada, provavelmente seria mais interessante uma formação focada no design em si. Sinto que falta isso nos cursos de Game Design: uma base em Design mais forte, suas práticas e processos, conforme podem ser aplicados em áreas que não sejam necessariamente a de jogos.

Isso é um dos motivos pelo qual ser um Lead Game Designer é difícil. Mas poucas coisas na vida de um Lead GD são fáceis. Na verdade, a área de jogos não é uma área para quem está atrás de enorme estabilidade e poucos desafios. Como já disseram por aí, todo jogo terminado é como um pequeno milagre. Esse artigo cobre um pouquinho do que é ser um Lead Game Designer, pelo menos da minha pequena experiência sendo um. Tenho certeza que muitas pessoas da indústria vão discordar de muitas das coisas que eu disse por aqui, mas faz parte. Isso acontece pois nossas trajetórias são distintas. Caso você queira conversar mais sobre os assuntos que eu discuti aqui, ou sobre outras coisas relacionadas a fazer jogos, me procure. Eu vou adorar.

Sobre a autora

Thais Weiller é mestre pela ECA-USP pesquisando game design, com uma dissertação que virou um livro e um blog. Ela trabalhou em games como “Oniken”, “Odallus”, “Finding Monsters”, “Rainy Day” entre outros, e também fundou, junto com Danilo Dias, a desenvolvedora JoyMasher. Atualmente, Thais dá aulas de design de jogos na PUC do Paraná.

Sobre o Blog

Quais os mitos e fantasias que influenciam nosso comportamento e afetam nossa paixão pelos games? Neste espaço, Thais vai trazer a perspectiva dos pesquisadores e desenvolvedores de jogos para nos ajudar a entender os games de uma maneira diferente.