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Achou que tinha entendido? "Achou errado, otário!"

Thais Weiller

02/06/2020 10h30

A série Metal Gear trata de temas como a luta contra governos autoritários; ainda assim, há quem se diga fã de Snake mas que ao mesmo tempo apoie governantes truculentos e fascistas

Quase dois anos atrás, quando estávamos em época de eleições, nós da JoyMasher decidimos que não podíamos mais assistir em silêncio ao espetáculo mórbido que se desenrolava à nossa frente. A construção dessa frase está um pouco exagerada — na verdade, eu e o Danilo éramos bem vocais sobre nossas posições pessoais, mas nunca havíamos utilizado o selo do nosso estúdio para um posicionamento destes.

Por um lado, pensávamos que era óbvio: o estúdio é composto por dois indivíduos, os dois veementemente contrários ao candidato misógino que faz apologia à ditadura e ao autoritarismo, portanto, as pessoas deveriam conseguir fazer as contas. Por outro, o estúdio é o criador dos jogos, as pessoas gostam dos jogos e por consequência do estúdio, não precisam conhecer as pessoas por trás deles. Você gosta do cachorro quente do carrinho que fica na Av. Getúlio Vargas, não necessariamente sabe o nome e a escala de cada um dos chapeiros e o posicionamento deles sobre genocídio e segregação racial (embora eu espere, de todo coração, que sejam contrários). 

Achávamos que, mesmo pelo segundo cenário, os jogadores seriam capazes de perceber os temas e mensagens por trás de nossos jogos. Oniken fala sobre um pequeno grupo de humanos que lutam contra a máquina e máquinas fascistas. São revolucionários estranhos e diferentes entre si que se unem para sabotar e talvez até destruir um regime violento e autoritário que busca homogênificar a terra, destruindo a vida orgânica dela. Claro, tendo em vista o feel over-the-top e macarronico que queríamos com esse jogo, você luta contra a violência com mais violência, mas vocês entendem o ponto: lutem contra o poder. 

Achávamos que os jogadores seriam capazes de perceber os temas e mensagens por trás de nossos jogos

Odallus, por outro lado, era um questionamento sobre esse poder. Temos o protagonista Haggis, um grande guerreiro, que no começo do jogo acreditamos  ser a vítima de uma grande injustiça, o sequestro de seu filho. No decorrer do jogo, no entanto, descobrimos que Haggis é a personificação pela busca desenfreada pelo poder na qual nenhum sacrifício é grande demais desde que o coloque mais próximo de seus objetivos. Em algum momento no passado, Haggis tentou desistir desta vida e levar uma existência mais sossegada com seu filho, mas alguém assim não pode fugir de seus crimes para sempre. Ou seja, o poder corrompe, e mesmo que você tente fugir de suas ações, as consequências ainda vão atrás de você.

Blazing Chrome ainda não havia saído em 2o18, embora era o jogo do qual mais falávamos no período, mas ele é tematicamente muito parecido com o Oniken — então acho que não precisamos discuti-lo em profundidade. Só gostaria de citar que em Blazing temos um protagonista que fazia parte do regime (Doyle, o robô). Ao encontrar sua individualidade, ele foi capaz de escapar da influência fascista, o que para mim simboliza o poder em reconhecer seu próprio erro e mudar suas atitudes.

O robô Doyle é um dos personagens de Blazing Chrome, lançado em 2019

Depois de ponderados todos esses pontos, acreditamos que nos posicionar publicamente e inequivocamente ainda era nosso dever, mas que não deveria provocar grande surpresa considerando todas as outras áreas e contextos que havíamos nos posicionado.

Achamos errado, otários que somos.

No Twitter e Facebook, onde nosso posicionamento atingiu mais pessoas, houve, sim, comentários de apoio ou de entendimento de algumas pessoas que discordavam da nossa visão mas entendiam a posição. Também houve comentários de surpresa e indignação, e até alguns com ameaças. A recepção, embora tenha nos surpreendido no resultado, provou o quanto se fazia necessário sermos claros sobre como vemos a situação.

A recepção, embora tenha nos surpreendido no resultado, provou o quanto se fazia necessário sermos claros sobre como vemos a situação

Depois desse momento (infelizmente), nunca mais me surpreendi quando autoproclamados amantes de determinados jogos defendem e demonstram ações tão absolutamente diferentes das que tais jogos demonstram.

A série Metal Gear trata de temas como governos autoritários e a luta contra eles, a importância de questionar o poder, em especial quando este se corrompe e coloca vidas em segundo plano. Não é uma das minhas séries favoritas, já que trata esses temas, a meu ver, de forma superficial e infantilizada. Mas é necessário reconhecer os méritos quando eles são devidos: Metal Gear fala sobre, essencialmente, as consequências da busca desenfreada pelo poder (em especial, bélico e militar) e da luta contra esse poder. Ainda assim, não tenho fios de cabelo o suficiente para contar todos os que se dizem fãs de Snake ou de Big Boss mas que apoiam ações, governantes e governos autoritários, truculentos e fascistas. 

Não tenho fios de cabelo o suficiente para contar todos os que se dizem fãs de Snake ou de Big Boss mas que apoiam ações, governantes e governos autoritários, truculentos e fascistas

A série Metroid foi uma das primeiras a ter uma protagonista mulher

Já não tão popular graças a uma série de péssimos reboots, a série Metroid foi uma das primeiras a ter uma protagonista mulher. E não só isso: uma mulher que não correspondia aos padrões de gênero prevalentes na época. Samus era uma mulher que explorava, lutava e atirava sem titubear , sem usar saia ou laços e sem a necessidade de ser sexy (ao menos, antes do fim do jogo). A redução da popularidade diminuiu o número de pessoas que podemos chamar de fãs da série, mas ainda assim muitos deles são os mesmos que estão reclamando de como o politicamente correto está destruindo o direito a peitões em jogos de luta.

Uma triste história sobre como grandes corporações destroem vidas e planetas em busca de lucro e poder, Final Fantasy 7 tem fãs que defendem a unhas e dentes a atual megacorporação que detém os direitos do título e lança produtos e reboots incessantemente. Uma gentil experiência sobre empatia, aceitar diferenças e abraçar o que nos torna únicos, Undertale foi justificativa para cyberbullying por parte de alguns de seus fãs. 

Undertale: "o RPG em que você não precisa destruir ninguém"

Por último, e de longe o tópico mais desanimador de todos, vamos falar dos autoproclamados gamers e nerds, que foram marginalizados e brutalizados quando eram mais novos, seja por seus gostos diferentes ou por características físicas ou por qualquer outro motivo.

A busca dessa identidade agora na vida adulta é importante e catártica para eles. Sentem-se orgulhosos de persistir a gostar do que antes foram perseguidos e ridicularizados por amar. Essa simpatia e compaixão por outros nerds, entretanto, evapora quando muitos desses outrora excluídos percebem grupos que, na opinião deles, não têm o direito de gostar das mesmas coisas. O motivo de não ter tal direito, você se pergunta? Varia bastante de individuo para indivíduo, mas vai desde falácias lógicas como "eu nunca conheci ninguém desse grupo que gostava disso quando eu era mais jovem, LOGO, ninguém desse grupo nunca gostou disso, LOGO, se você é desse grupo e diz que gosta disso você só está fingindo" ao velho e enraizado preconceito "esse grupo não joga bem". Desta forma, o grupo de pessoas que se unia pelo trauma passado por ser excluído acaba excluindo novos grupos, fortalecendo estigmas tóxicos e aumentando abismos. 

A vítima de bullying se torna o bully, ou como diria Paulo Freire: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor".

Claro, esse processo não se dá apenas no universo gamer, oxalá no universo geek. Quantos entusiastas de segunda guerra mundial preferiam não ver os claros sinais da história se repetindo em 2016 e 2018, quantas pessoas que choraram em Avatar ou assistiam os Animais do Bosque dos Vinténs quando crianças apoiam a derrubada da floresta amazônica e a sucateação das instituições que deviam protegê-la, quantos Trekkers são itolerantes com quem é diferente…

Eu poderia continuar esta lista por dias e não acabaria os exemplos de pessoas que simplesmente não entederam a lição que as obras de ficção tentam passar ou as consequências irreversíveis de ações históricas. Mas não importa quantos exemplos eu dê, eu não consigo entender exatamente por que isso acontece. É falta de compreensão do original ou uma capacidade de abstração e recorte do que não lhe convém? É o viés de confirmação pintando qualquer coisa apenas com as cores das crenças individuais ou é o egoísmo de se benficiar da própria narrativa?

Independentemente do motivo, essas pessoas ainda existem e se recusam a admitir suas próprias hipocrisias. Se contestadas a respeito de seu problema lógico, respondem de forma evasiva ou atacando como defesa. Quando pessoas morrem dentro de casa ou protestando contra o uso excessivo de violência, a culpa nunca é da pessoa exercendo a violência excessiva e do sistema que a colocou lá, a culpa é da roupa, é da hora, é do lugar, é do tempo, é do PT.

Não sou vidente mas já sei as reações a este texto. Alguns vão entender e concordar. Outros vão entender também, mas vão discordar. Outros vão continuar não entendendo, vão negar que as mensagens desses jogos sejam essas, afirmar que jogos não têm nada a ver com política, que se posicionar quanto a isso é uma perda de tempo ou dinheiro ou dos dois, que eu vou devia mudar pra Cuba, ser fuzilada e falir (não sei se nesta exata ordem).

Se você está nesta última categoria e chegou até aqui, meu muitíssimo obrigado e o convite para, em vez xingar muito nos comentários, refletir em que momento da sua vida você começou a ignorar informações que não te agradam. É algo pequeno, mas que ainda vai te ajudar muito na sua vida a partir deste momento, meu anjo.

Só mais uma tela de loading em The Outer Worlds

Sobre a autora

Thais Weiller é mestre pela ECA-USP pesquisando game design, com uma dissertação que virou um livro e um blog. Ela trabalhou em games como “Oniken”, “Odallus”, “Finding Monsters”, “Rainy Day” entre outros, e também fundou, junto com Danilo Dias, a desenvolvedora JoyMasher. Atualmente, Thais dá aulas de design de jogos na PUC do Paraná.

Sobre o Blog

Quais os mitos e fantasias que influenciam nosso comportamento e afetam nossa paixão pelos games? Neste espaço, Thais vai trazer a perspectiva dos pesquisadores e desenvolvedores de jogos para nos ajudar a entender os games de uma maneira diferente.