Por trás do jogo: O que faz um designer de narrativa (quando ele existe)?
Depois da apresentação das áreas de desenvolvimento de jogos, eu convidei diferentes profissionais para falarem da sua área diretamente aqui no Blog. Quem pega o teclado hoje é Maíra Testa, game designer e designer de narrativas com quase dez anos de experiência. Além de seu trabalho estar presente em jogos de PC, mobile e consoles, a Maíra também participa da organização do Firma Gamedev e do Dev Migas+.
Um jogo não existe sem design. Não estou falando aqui da existência da figura do game designer (acredite, muitos jogos já foram feitos sem que alguém tivesse esse papel) mas sim do design mesmo – qual é a forma do jogo e principalmente como ele funciona. Nesse sentido, como o jogo funciona está profundamente ligado ao que o jogo é. Pense por um minuto sobre como costumamos descrever um filme para alguém. "A Viagem de Chihiro" é um filme sobre uma menina que se perde dos seus pais e vai parar na casa de banho dos espíritos. "Clube da Luta" é sobre um cara insone que conhece um vendedor de sabão e juntos eles montam um clube violento.
Quando descrevemos um jogo, a descrição geralmente começa em como ele funciona. "GTA" é um RPG de roubar carros e viver a vida louca. "The Secret of Monkey Island" é um point and click com piratas caribenhos. Embora muitos jogos não tenham necessariamente um plot – uma trama que é desenvolvida no curso do jogo – eles sempre tem uma narrativa. A narrativa não é objetivamente a história do jogo; não é exatamente sobre o que ele é, mas como ele é, qual é a experiência e a sequência de acontecimentos. Vamos falar de narrativa nesse texto como a cola que traz contexto e coesão para o que o jogo é e como ele funciona.
A função do Designer de Narrativa é relativamente nova dentro da cadeia de produção de um jogo. Ele não é um roteirista – responsável pela criação, elaboração e construção narrativa dos textos e diálogos do jogo – e também não é um game designer no sentido clássico. O designer de narrativa fica numa função intermediária, quase uma especialização do game design, em que ele desempenha o papel da ponte entre o design e a experiência do jogo. Se supõe, é claro, que essa experiência envolva uma história, algo que está sendo contado no decorrer do jogo, seja essa mensagem direta (desenvolvida num plot) ou indireta.
Há muitas formas de contar uma história, e a grande vantagem dos joguinhos eletrônicos é que é um meio de muitas possibilidades. Todo meio de comunicação dispõe de ferramentas que são inerentes ao seu formato – qualquer meio audiovisual dispõe, é claro, de áudio e vídeo, enquanto meios impressos dispõem de ilustrações e texto – e também de sua peculiaridade. O cinema tem a edição, a possibilidade de conectar conceitos e espaços justapondo imagens. A HQ tem os quadros, também capazes de transmitir noções de tempo e espaço.
Os jogos tem a interação. Parece papo de aula de semiótica, mas essa mudança no posicionamento de quem consome e recebe a mensagem altera o que pode ser dito. E, principalmente, como. Podemos pensar em inúmeras formas de transmitir angústia: pela escolha das cores no cenário, pela animação do caminhar mais pesado de uma personagem, pelo som angustiante ou uma música mais tensa, pelos ângulos cortados de câmera, por uma mecânica que exige reflexos rápidos e quebra um padrão de menos ação predominante no resto do jogo. Todos esses elementos trabalham juntos para entregar o contexto (um momento de angústia) com coesão. Todas essas ideias podem vir de diferentes departamentos da produção, do designer de cenários ao designer de som, mas a responsabilidade de traçar o caminho narrativo que leva ao momento de angústia e garantir que essa experiência está sendo passada como a história pede é o designer de narrativa – quando ele existe, claro.
Muitos estúdios não tem demanda para alguém dedicado a esse aspecto do jogo. Cada projeto exige uma estrutura diferente de profissionais, e nem sempre um jogo ou todos os momentos dele pedem contexto ou coesão. Vamos falar de um exemplo que gosto muito de usar.
Em certo ponto de "Uncharted 2", o jogador é apresentado a uma missão stealth. No contexto, o jogador precisa entrar em um museu para roubar uma lâmpada a óleo fortemente guardada, e não pode atrair atenção para a sua presença lá dentro. Nathan Drake é o cara que mais atira sem critérios no mundo dos games, então o jogo propõe um desafio interessante que quebra a mecânica padrão e reforça um momento da narrativa. Uma nova mecânica stealth (apagar um inimigo e arrastá-lo para outro lugar) é introduzida para reforçar o caráter da missão.
Durante todo o gameplay da mansão, o jogador avança sem disparar um tiro, se escondendo nas sombras e atrás das muretas para emboscar e silenciar os guardas, um a um. Em certo ponto, o jogador recebe a única arma não-letal de toda a franquia Uncharted, uma arma que dispara dardos tranquilizantes. Aqui o jogo mistura a mecânica base com as recém-adquiridas habilidades stealth do jogador, abrindo caminho para uma nova possibilidade de enfrentar seus inimigos no resto do jogo, certo?
Não. Para essa missão, os dardos tranquilizantes são sua única alternativa, mas eles ficam indisponíveis depois dela. Assim que coloca as mãos na lâmpada a óleo, um plot point importante acontece (spoilers), e Nathan Drake logo está de volta ao que faz melhor: atirar sem escrúpulos.
Aqui, a coesão existe dentro do level do museu, reforçando o contexto, mas não se estende para fora dele. Apesar de não concordar com a escolha – abrir a possibilidade de usar a arma tranquilizante a qualquer momento traria uma dinâmica nova para a mecânica base, na minha opinião – entendo que essa foi uma escolha de design. O personagem principal estava inserido num contexto que exigiu uma abordagem nova (mecânica), mas os acontecimentos da história naquele episódio eram mais importantes na narrativa do que essa mudança de modus operandi. O jogo abre um parênteses para passar uma mensagem do plot e descarta estes artifícios durante o resto da história.
O designer de narrativa, então, é de certa forma o defensor da experiência. Ele tenta trazer todos os departamentos para uma mesma visão da mensagem que o jogo quer passar naquele momento, do que está acontecendo na narrativa e como os personagens e o ambiente reagem àquilo. Ele elabora a narrativa do jogo (Qual a história? Qual o contexto? Qual o plot?) e pode sugerir mecânicas, construir novos sistemas, trabalhar com os departamentos de arte e som para enriquecer a construção do universo do jogo. Em muitos estúdios o designer de narrativa também cumpre o papel do roteirista, para manter as equipes mais enxutas, mas é um acúmulo de funções; elaborar textos não é sua função mais importante. Textos são uma maneira relativamente barata de transmitir uma mensagem, mas também menos eficiente, visto que o jogador sempre pode escolher simplesmente não ler. Um bom design de narrativa amarra vários aspectos do jogo ao contexto, e o texto contribui com o todo em vez de carregar a mensagem por si só. Isso não significa que um jogo com texto brilhante não tenha uma boa narrativa, porém o texto é mais eficiente quando a mecânica base do jogo – como ele funciona – dá peso a ele.
"Disco Elysium" conquistou corações (o meu incluso) com um misto de texto bem elaborado e mecânica construída em torno e a partir do significado do texto. Um sistema alimenta e suporta o outro, e o centro da experiência é a narrativa.
"Spec Ops: The Line" é um exemplo brilhante de como é possível reconstruir um gênero – jogos de tiro com temática de guerra – com o uso coerente de recursos narrativos do jogo para contar uma história, da mesma forma que "Bioshock", anos antes, se propôs a criar um FPS com história.
Mas então eu preciso ter um designer de narrativa no meu projeto? Não há resposta certa. Para garantir meu emprego eu diria CLARO QUE SIM, porém é o tamanho da sua equipe, ou a própria natureza do seu jogo, que vão ditar se você precisa de alguém dedicado a esse papel. Em equipes pequenas e bem entrosadas, é comum o design de narrativa ser descentralizado, uma responsabilidade dividida entre todos, fazendo com que a figura de um designer de narrativa no projeto tenha um papel mais próximo do roteirista. A dica que posso deixar é que, se seu projeto por qualquer motivo não comporta um designer de narrativa, tenha alguém no seu time que consiga defender a visão do tema central e esteja sempre atento à coerência da história e da mensagem. Esse carinho já é capaz de transformar a experiência do jogo e explorar melhor o potencial das histórias que só os jogos permitem que a gente conte.
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